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, 01 de maio de 2024.
01/06/1999
Volume 2 - Número 1
9. Oftmalmologia e cidadania: Resultados do Projeto \

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Oftmalmologia e cidadania: Resultados do Projeto "Visão Solidária" no interior de Pernambuco

Ophthalmology and citizenship: Results of the project “Solidarity in Vision” in the country-side of the state of Pernambuco

João Carlos Grottone, Elaine Prada Tuzzi, Cristiane Andrade Coelho, Gustavo Teixeira Grottone
Serviço de Oftalmologia da Santa Casa da Misericórdia de Santos, Universidade Santa Cecília, Projetos Comunidade Solidária, Universidade Solidária e Alfabetização Solidária e Disciplina de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas de Santos da Unilus

Grottone JC, Tuzzi EP, Coelho CA, Grottone GT. Ophthalmology and citizenship: Results of the project “Solidarity in Vision” in the country-side of the state of Pernambuco. Acta Medica Misericordiæ 2(1): 34-37, 1999

Resumo

Os autores detectaram limitações de métodos de educação comunitária de alfabetização de adultos, na alta incidência de deficiência visual nessa faixa etária e suas intercorrências ambientais. Colocam em discussão a necessidade de conscientização da responsabilidade histórica do médico, especialmente nas novas gerações, resgatando ações sociais de espirito humanístico, viáveis, buscando atenuar as injustiças a que assistimos no cotidiano e da qual temos parcela de responsabilidade, por omissão e capacidade para fazer ao menos a nossa parte.

Palavras-chave: Oftalmologia. Responsabilidade social. Educação.

Summary

The authors have found restrictions on the methods of adult education due to the high incidence of visual deficiencies and their environmental conditions. They discuss the need for physicians, especially younger ones, to take over their responsibilities in order to diminish every day inequities.

Key Words: Ophthalmology. Social responsability. Education.

INTRODUÇÃO

A medicina social torna-se profundamente evidente na Oftalmologia, especialidade que interage com o sentido maior do ser humano, a visão, capaz de excluí-lo das relações humanas, culturais e sociais, sem contar a trabalhista, àqueles que total ou parcial, temporária ou definitivamente, a tenham limitada. Ao lado de projetos educacionais, visando melhoria das condições básicas de vida e de oportunidades melhores de sustento e desenvolvimento, concorre a necessidade de visão, quesito básico para projetos que buscam educar a população adulta.

Envolvido por essa temática, o Serviço de Oftalmologia da Santa Casa de Santos, a Disciplina de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas de Santos do Centro Universitário Lusíada – Unilus - engajaram-se no programa da Universidade Santa Cecília de Santos, Unisanta, o projeto "Universidade Solidária", integrante do programa governamental "Comunidade Solidária", atuando no agreste pernambucano, mais precisamente no município de Águas Belas, cerca de 300 Km de Recife, Pernambuco.

O referido programa vem atuando desde 1997, com o objetivo de reduzir o índice de analfabetismo do país, pela ação junto aos municípios de maiores taxas, contando para tanto com a participação da iniciativa privada, de universidades e colaboração das secretarias municipais de educação.

O projeto da Unisanta vem atuando especialmente na zona rural e aldeias indígenas do interior pernambucano, alfabetizando adultos. Detectou-se a grande dificuldade, de significativo número de alunos, para o acompanhamento das aulas, por deficiência visual, o que estava levando à evasão acentuada e que motivou nossa modesta participação, no período de março a maio de 1998, devendo haver continuidade do programa em breve.

MATERIAL E MÉTODO

Inicialmente, foram avaliados alunos do curso de alfabetização de adultos no município de Águas Belas, Pernambuco, após triagem feita por professores, por meio de tabela de Snellen para aferição de acuidade visual e questionário simplificado, vinculado a eventuais sintomas e sinais causados pelo esforço visual .

Foram selecionados para exame médico oftalmológico alunos do curso de alfabetização que apresentavam limitação de visão para longe, para perto ou ambas, bem como aqueles que, mesmo com boa visão, tivessem a queixa de astenopia, levantada pelo questionário, caracterizada por sintomas como lacrimejamento, irritação ocular ou cefaléia, associados ao esforço visual. As condições de exame foram as mesmas oferecidas para as aulas, isto é, as próprias salas de aula, muitas vezes improvisadas em sítios distantes.

A intenção inicial do presente estudo foi conhecer as condições em que vem sendo implementado o Projeto Comunidade-Universidade: Alfabetização Solidária e avaliar as dificuldades visuais apresentadas pelos alunos, o que estaria diminuindo seu rendimento escolar.

O instrumental técnico oftalmológico foi bastante reduzido, por dificuldade de locomoção e obtenção, uma vez que não existe oftalmologista no município, distando o mais próximo cerca de duas horas de viagem de automóvel. Constou de Tabelas de Snellen, cartão de acuidade visual de perto de Jaeger, réguas de esquiascopia, retinoscópio (para o exame de refração), oftalmoscópio, caixa de lentes de prova reduzida e armação de prova, midriáticos, lanterna. Não dispúnhamos de tonômetro nem de lâmpada de fenda .

RESULTADOS.

A população em alfabetização ou ao projeto vinculada, atendida pelos oftalmologistas, constou de 237 pessoas, sendo 60,3% do sexo feminino. A distribuição etária do grupo mostrou que a maior parte estava entre 20 e 60 anos de idade. Somente doze pessoas desse grupo já utilizavam recursos corretivos ópticos, porém, em situação defasada com a necessidade atual.

Os resultados mostrados na tabela 1 apontam para 81 examinados com importante deficiência visual para longe, com acuidade visual menor que 0.7, no olho melhor, correspondendo a 34,2% do total. A deficiência de visão de perto, pior que J2 pela tabela de Jaeger, atingia 35,8% do total.

A tabela 2, com a distribuição laborativa dos examinados, mostra a predominância do trabalhador rural, com 165 casos dos 237 examinados.

Da interação da necessidade de óculos de perto e/ou longe, buscando a acuidade visual para longe 20/20 e para perto Jaeger 1, isto é 100%, encontramos a indicação de uso de óculos para 63% dos examinados, dos quais 28,3% usarão somente para perto, 21,5% somente para longe e 13,1% para longe e para perto.

Além da deficiência visual manifesta, acima detectada, houve alta incidência de casos de astenopia, referida como lacrimejamento, cefaléia, irritação visual ou outros sintomas relacionados ao esforço visual, o que concorria para a má qualidade de visão.

Chamou a atenção, na tabela 3, a incidência elevada de pterígios na população estudada, 22,4%, especialmente nos estudantes agricultores, fator de desconforto visual importante.

DISCUSSÃO

Os resultados obtidos dentro da população estudada levam-nos a reflexões da imprescindível ação de Oftalmologia Sanitária, onde um Programa de Visão Solidária deve ser estabelecido em nosso País, atingindo, de forma organizada, regiões distantes dos grandes centros, atrelado à Universidade Solidária, para que o grande Programa de Comunidade Solidária possa se expandir e não ter esforços desperdiçados, uma vez que é impossível a aplicação do Projeto, a alunos com impossibilidade de acompanhar visualmente o estudo.

Objeções quanto à viabilidade da proposta é objeto lógico daqueles que não querem entender a finalidade social de nossa atividade, nem vislumbrar a ideologia de que não podemos ser responsabilizados por todos os problemas existentes em nosso campo de atuação, mas sim, por aqueles nos quais podemos intervir e aqui surge o complemento ao "poder", que é, "querer, instrumentar a viabilização".

Este é um trabalho, que conforme artigos de Temporini5,6, aproxima-se mais de uma metodologia de investigação social de Oftalmologia em Saúde Pública, onde não há uma preocupação imediata com a riqueza dos dados, dos métodos científicos de exame, mas sim com a conduta humana e seus fatores determinantes, como o conhecimento, motivações, atitudes, valores e, especialmente, dos padrões sócio-econômicos e ambientais.

O levantamento de dados apresentados serve para dar substrato, por antecederem com cunho científico, propostas de ações de Saúde Ocular Comunitária e Social. O Prof. Renato Toledo7, em artigo publicado em 1969, apontava para a dificuldade de conhecermos os recursos para implantação de programas de saúde ocular e leva a reflexões atuais, na época de comunicação integrada, já com grande avanço, porém , ainda com grande atraso, diante da necessidade nacional.

Trabalho de Montes e colaboradores4, de 1977, ressaltava a gravidade da saúde ocular, especialmente em áreas rurais, onde as distâncias, recursos econômicos, ignorância e tabus, impedem o deslocamento de milhões de brasileiros até os centros com recursos oftalmológicos. Levantava, já na época, a questão de ir em direção ao problema, já que o mesmo não tem como se dirigir à solução. Propõe a criação de Unidades Móveis de Oftalmologia, substanciado em experiência de outros países como a Índia, Paquistão, Senegal, Kênia, Egito, Nepal3, Canadá, Israel e Estados Unidos. Trazem eles, em suas reflexões, o conceito do trabalho socialmente mais útil, aproximando-se mais do humano e da fraternidade, que devemos colocar no nível de nossas possibilidades, conhecendo inicialmente a região a ser trabalhada, para saber o que deveremos ter para atender as suas prioridades.

Propostas de planos nacionais de saúde ocular surgem em nossa literatura há décadas, ganhando pequeno desenvolvimento em grandes centros, como o Estado de São Paulo1.

Da ética e da responsabilidade médica, oportunamente colocada em recente editorial dos Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, por Belfort Jr.2, sob o título "Projeto Profissionalismo" é que poderemos iniciar esta cruzada, resgatando valores morais e éticos, já um tanto desalinhadas em nossos tempos, e levando-os à formação acadêmica, exercitando-os, através de projetos da Universidade Solidária.

Analisado em termos de programa centralizado pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia poderemos evoluir com fator multiplicador de ações, que poderia levar à distante região, um programa de visão social mínimo, compatível com a dignidade humana.

Oftalmologia social, compromisso humanitário de todos nós. Não importa o tamanho, a dimensão da ação que efetuemos porque, dessa somatória, atingiremos a meta da dignidade para muitos, cumprindo com a nossa parte.

Tabela 1 – Acuidade visual sem correção para longe
  até 40 anos > 40 anos total
< que 0.7 35 46 81
0.7 ou maior 100 56 156

 

Tabela 2 – Incidência de pterígeo segundo a atividade laborativa
Atividade laborativa Total Pterígios %
Agricultor 165 39 24,0%
Professor 22 2 9,0%
Artesão 20 3 15,0%
Motorista 3 3 100,0%
Estudante 11 1 9,0%
Agente de Saúde 4 1 25,0%
Doméstica 6 1 16,0%
Outros 6 0 0,0%
Total 237 53  

 

Tabela 3 - Incidência de achados clínicos na população examinada.
Pterígio 53 22,4% Nevus Conjuntival 1 0,4%
Atrofia N.Óptico 2 0.8% Ceratocone 1 0,4%
F.O de Hipert.Arterial 6 2,5% Phthisis bulbi 3 1,2%
Catarata 9 3,8% Calázio 2 0.8%
Leucoma córnea 2 0.8% CoriorretiniteCicatricial 2 0.8%
Ret.Diabética 2 0,8% Ambliopia Ex-anopsia 1 0,4%
Exotropia 2 0,8% Blefarite 3 1,2%
Esotropia 3 1,2% Exoforia 11 4,6%
 

CONCLUSÃO
Analisando os resultados de exame oftalmológico na população adulta em alfabetização, poderemos entender as dificuldades encontradas ao bom rendimento escolar. Concluímos que o exame oftalmológico muito pode contribuir ao grandioso programa de Alfabetização Solidária. Somando-se a estes números que analisam a população estudada quanto às deficiências oculares encontradas, devemos nos ater ao aspecto humanitário, resultado daquilo que, vivenciando a realidade de nossos pacientes, nos honrou como profissionais e engrandeceu como seres humanos.

O trabalho desenvolvido nesta e em outras regiões carentes do país merece elogios pela forma como é conduzido, graças ao trabalho conjunto de universidades, empresas privadas e prefeituras colaborando para o crescimento de um país.

Que cada um de nós, como profissionais da saúde, possamos fazer com que nossos conhecimentos se unam a este ato humanitário, na intenção de levar a quem precisa a solução de um problema. Vale, portanto, lembrar ser esta uma diretriz nobre e obrigatória da carreira que juramos, como Hipócrates.

BIBLIOGRAFIA

1. Barros O M: Proposta de um plano nacional de saúde ocular, com ênfase na atenção primária. Arq Bras Oftalmologia 1984; 47:1-6.

2. Belfort Jr R: Projeto Profissionalismo. Arq Bras Oftalmologia 1998; 61:7-9.

3. Madeley J: Um programa de visão . Arq Bras Oftalmologia 1982; 45:74-76

4. Monte FQ: Unidade móvel de oftalmologia como meio auxiliar de prevenção e combate a cegueira. Rev Bras Oftalmologia 1977, 36:813-824.

5. Temporini E: Pesquisa de oftalmologia em saúde pública: considerações metodológicas sobre fatores humanos. Arq Bras Oftalmologia 1991; 54:279.

6. Temporini E, José NK: Níveis de prevenção de problemas oftalmológicos: propostas de investigação. Arq Bras Oftalmologia 1995; 58:189-192.

7. Toledo R: Estado atual da assistência oftalmológica no Brasil. Arq Bras Oftalmologia 1969, 32:5-10.

 

AGRADECIMENTOS: Os autores agradecem ao Prof. Fábio Giordano. coordenador do projeto da Unisanta em Águas Belas, PE, pela estimulante lição de cidadania e à Universidade Santa Cecília de Santos pelo apoio ao projeto.

OS AUTORES. JC Grottone é chefe do Serviço de Oftalmologia da Santa Casa de Santos, professor regente de Oftalmologia da Faculdade de Ciências Médicas de Santos do Centro Universitário Lusíada. EP Tuzzi e CA Coelho são médicas estagiárias do Serviço de Oftalmologia da Santa Casa de Santos. GT Grottone é aluno da Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal do Estado de São Paulo.

ENDEREÇO/ADDRESS:

Dr. João Carlos Grottone
Av. Ana Costa 221 - cj 21 - Santos, SP
CEP 11060-001 - Brasil
Tel. 013-2333964 Fax 013-2331386
E-mail :
grottone@uol.com.br

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