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, 02 de maio de 2024.
01/06/2000
Volume 3 - Número 1
3 - 500 Anos - O Mundo Unido pelas Misericórdias

 

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500 Anos - O Mundo Unido pelas Misericórdias

500 years - The World United by the Misericórdias

José Linhares
Confederação das Misericórdia do Brasil e Câmara dos Deputados, Brasília, DF

Linhares J: 500 years - The World United by the Misericórdias. Acta Medica Misericordiæ 2000; 3 (1): 10-14

Resumo:

Nossa saudação aos que, tangidos pela Misericórdia, constróem a Santa Casa de Santos. A filosofia é que embasa o pensamento da presença de Deus no caudal da história. A confluência de três eventos que se aproximam velozmente - o começo do terceiro milênio, os 500 anos do descobrimento do Brasil e da implantação das Santas Casas - colocam diante de nós os 2000 anos da presença de Jesus Cristo na história. A luta pela proteção dos direitos das pessoas é o indicador da qualidade do processo de democratização e humanização das sociedades. Desfaço a dicotomia entre obras espirituais e corporais, terminologia de origem helênica e não bíblica. Traduzir, contemporaneamente, as Obras de Misericórdia é tarefa que Deus nos confiou, a nós, Santas Casas e congêneres, testemunhas vivas do eterno que se perpetua no tempo. Valeria a pena pinçarmos algumas Obras da Misericórdia para sentirmos a sua existencialidade: ensinar o simples; dar bom conselho a quem pede; castigar com caridade os que erram; consolar os tristes desconsolados; dar de comer aos famintos; e dar de beber aos que têm sede. Finalizando, abram-se as portas do universo, deixe que o mundo peregrine e caminhe unido em busca da Misericórdia - 500 anos,
O Mundo Unidos pelas Misericórdias.

Descritores : Hospitais filantrópicos. História da Medicina. Humanismo. Filosofia.

Summary:

We salute those who, guided by the Misericórdia, construct the Santa Casa of Santos. Philosophy provides the basis for the thoughts of God in the stream of history. The confluence of three events that come together rapidly - the beginning of the third millenium, 500 years since the discovery of Brazil and the founding of the Santas Casas - calls to our attention the 2000 years of the presence of Jesus Christ in History. The struggle for the protection of the human rights is an indicator of the quality of the process of democratization and humanization of societies. I wish to unmake the dichotomy between spiritual and corporeal principles, terminology of Hellenic and not Biblical origin. To translate, in contemporary times, the principles of Misericórdia is a task that God has entrusted us: the Santas Casas and other institutions of this nature are living witnesses of God's will perpetuated in time. It would be worth examining some of the Misericórdia principles in order to feel their existentiality: to teach the humble; to give good advice to those who seek it; to punish with benevolence those who err; to comfort those who are sad or disconsolate; to feed the hungry; to give water to the thirsty. Concluding, may the doors of the Universe be open, let pilgrims explore the world and march united in search of the Misericórdia - The World United by the Misericórdias 500 years on.

Key words: Hospitals, voluntary. History of Medicine. Humanism. Philosophy.

Colhemos do ensejo para levar nossas saudações a todos que fazem este grande evento, como pré-congresso para a grande celebração dos 500 anos das Santas Casas do Brasil. Nossa saudação aos que, tangidos pela Misericórdia, constroem a Santa Casa de Santos.

Em Bruxelas, dois adolescentes africanos foram encontrados mortos de frio dentro do compartimento do trem de aterrissagem de um jato da empresa belga. Nos bolsos dos jovens congelados, o testamento para os dirigentes europeus: "Nós sofremos enormemente na África. Ajudem-nos... Não temos direitos como crianças. Nós temos guerras e doenças e nos falta comida. Queremos estudar, queremos ser como vocês". Michel Candessus - leu esta mensagem aos ministros da Fazenda de 182 países que compõem o FMI e enfatizou: "Chegou a hora de humanizar a globalização".

O presidente do BIRD, Sr. James Wolfensohn, baseado em trabalho que vem sendo realizado há 4 anos, ouvindo 60 mil pessoas em 60 países, afirmou: "Não, a crise não acabou, o desafio apenas começou", e acrescentava: "uma outra crise, a crise humana daqueles condenados à pobreza está a surgir".

Alguns números impressionam: se os 20% mais ricos do planeta já tinham uma renda trinta vezes maior que a dos 20% mais pobres, em 1965, em 1980 a diferença saltou para sessenta vezes. A renda per capita dos latino-americanos, que já correspondeu a 36% das dos países mais ricos, hoje é de 25%. O Brasil crescia a 6% nos anos 70, o percentual caiu para 0,96% nos 80 e para 0,6% de 1990 para cá.

Quando estamos a celebrar os 500 anos de Misericórdia, temos que inseri-lo no contexto teológico. E a filosofia é que embasa o pensamento da presença de Deus no caudal da história.

Houve uma corrente filosófica chamada de modernidade que tentava negar a existência de Deus. A confluência de três eventos que se aproximam velozmente, ou mais precisamente: o começo do terceiro milênio, os 500 anos do descobrimento do Brasil e da implantação das Santas Casas, colocam diante de nós os 2000 anos de presença de Jesus Cristo na história.

Até o início desta década, alguns intelectuais divergiam da tese de Nietzsche que já afirmara a morte de Deus. Eles diziam que Deus estaria morto no ano 2000. Todos os prognósticos dos que se confessavam filhos do século ateu sofreram contradições, porque a maior surpresa deste fim de século, como afirma Paul Johnson, é que "os aspectos mais fascinantes da história residem, não nas constatações das coisas que realmente ocorrem, mas na constatação daquelas que, com obstinação, recusam-se a acontecer. O grande não a contecimento do século XX foi chegar-se à conclusão de que Deus não morreu" e prossegue: "as perspectivas com relação a Deus são excelentes".

A corrente filosófica há pouco nomeada ensejou o nascimento de três grandes ideologias: o ilustracionismo, o capitalismo e o coletivismo marxista. As três, juntas, pensavam que a razão, ancorada na ciência e na tecnologia, expurgaria o que com nomes diferentes chamavam de "ópio do povo (religião)".

Heidegger, na revista Spiegel, interrogado pelo jornalista para inverter a manipulação da ciência e da tecnologia em detrimento do esquecimento do ser, respondeu: "só um Deus pode ainda salvar-nos. A única possibilidade de salvação que vejo consiste em preparar, por intermédio do pensamento e da poesia, a disposição para a aparição de Deus".

A teoria de ilustração foi materializada em Nagasaki e Auschwitz. O repúdio ao liberalismo capitalista acontece nas formas de holocausto, de miséria e de crises conhecidas por todos nós. A narrativa do coletivismo marxista é revidada pela crônica do arquipélago de Gulag.

O evento que hoje celebramos transforma-se para nós, construtores de uma civilização vazada no amor, numa reflexão, compromisso dos valores inspirados dos direitos humanos que são, simultaneamente, horizonte e energia para sua proteção e aprofundamento. O desafio de hoje é traduzir as Obras de Misericórdia de ontem para uma versão contemporânea no conceito da cultura que nos cerca.

A intervenção sistemática da igreja, desde Leão XIII (Rerum Novarum - 1891) advertindo para distinguirmos a ordem da justiça e a ordem da caridade, tem uma expressão forte em João XXIII (Pacem In Terris - 1963), no Concílio Vaticano II (Gaudium Et Spes - 1965), em Paulo VI (Populorum Progressio - 1967), em João Paulo II, na ênfase que trazem suas encíclicas quando, contemplando a globalização, adverte "para que ela não esmague o social" e deixe prevalecer à solidariedade como valor, a perspectiva relacional do momento e a construção da cidadania.

Somos convidados a resgatar o capital simbólico das Obras de Misericórdia. Construir na luta, no sofrimento, na utopia, uma cultura tecida com paciência e persistência, tentando reconstruir esta nova civilização.

Todo futuro tem de ser enraizado na tradição viva. Nestes nossos tempos de modernidade e de progresso, simultaneamente, marcados pela exclusão social, fazendo surgir os sem emprego, os sem família, os sem casa, nos deparamos com a grande descoberta: estamos a viver com a solidão mais absoluta, seja ela espiritual ou corporal, fazendo o mundo clamar por ações de Misericórdia.

Os tempos são desiguais para pessoas e para os povos. Como resolver esta atroz contradição num mundo global e emergente, que tenta atenuar o sofrimento e retardar a morte e sentenciando, ao mesmo tempo, uma grande maioria a conviver com marginalização social.

As filosofias contemporâneas enfatizam que a liberdade não é o mero poder de escolher entre situações objetivas, é também a possibilidade de dar sentido a situações densas como o amor, o sofrimento, a morte, é, finalmente, o poder de construir a vida em harmonia consigo mesmo, desenvolvendo um projeto que tem em sua essência a bondade, verdade e liberdade profundamente entrelaçadas, coincidindo com o que ensinou Jesus Cristo.

A justiça torna-se a primeira luta do amor, e o amor de Jesus Cristo como experiência de generosidade e de perdão, ensinou-nos a construir a cidadania com liberdade e democracia. A luta pela proteção dos direitos das pessoas é o indicador da qualidade do processo de democratização e humanização das sociedades.

Neste momento, valeria a pena pinçarmos algumas Obras de Misericórdia para sentirmos a sua existencialidade, a sua necessidade para que o mundo se transmute em algo mais uno, mais fraterno e mais solidário. Começo por desfazer a dicotomia entre obras espirituais e corporais. Esta terminologia não tem origem bíblica, sua influência é helênica, oriunda de Platão, assumida por Descartes e que de certo modo fere o indivíduo, na unidade da pessoa. Traduzir, contemporaneamente, as Obras de Misericórdia é tarefa que Deus nos confiou, a nós, Santas Casas e congêneres, testemunhas vivas do eterno que se perpetua no tempo.

Reflitamos, juntos, e descubramos o valor de sua atualização e eficácia:

Primeira obra: Ensinar o simples

No proscênio do século XXI, vemo-nos convidados a reler o seu conteúdo à luz do enquadramento filosófico e teórico contemporâneo. A postura do homem hodierno está voltada mais para o aprender do que para o ensinar. A lição proposta é mais um convite do que uma convicção. Depurarmos, libertamos das complicações em que nascemos é aprender a ser simples e é isto que nos leva à outra convicção: aprender com o simples.

O bloqueio ideológico da civilização contemporânea cerceia em nós a abertura para a liberdade e convivência. A tentação do momento é a do enquadramento forjado nos antagonismos: direito - esquerdo; novo - velho; informado - desinformado. Paulo Freire, em sua lucidez, recitava-nos: "Somos chamados a aprender ensinando e ensinar aprendendo" . A nossa lógica reside na convicção de que nós e nossas instituições devem se converter em cenáculos vivos, onde ouviremos as lições profundas e existenciais que nos são propostas para os excluídos, sem nunca perdemos a oportunidade de multiplicarmos, na doação, todas as nossas formas de conhecimento.

A alternativa do presente é nos colocarmos em estado de espírito e abertos ao novo que vem surgindo. Valorizar os movimentos que surgem e que nos são apresentados como a nova força que está a construir a civilização " in fieri ": mulheres, índios, negros, jovens, ecologistas e tantos outros que rompem os estereótipos e levam-nos à aprendizagem a que somos chamados nesta Primeira Obra de Misericórdia. Somos chamados a adotar o ser simples.

Segunda obra: Dar bom conselho a quem o pede

O conselho é sempre um dom e um dom gratuito. Viver em comunhão com o próximo é exigência de solidariedade. O sofrer do vizinho é também uma responsabilidade nossa. Postar-se, gratuitamente, ante um mundo tão difícil, tão duro como este em que vivemos, quando as pessoas sentem grandes inquietações, incertezas, angústias e uma insegurança enorme ante os desafios que lhe são propostos, é bem aqui, que se tem de valorizar o conselho, a palavra, o apoio, o estímulo, o esclarecimento, o conforto.

É o calor e a emoção de nossa voz que pode chegar ao próximo mais próximo, mas que pode, por intermédio dos meios que nos são oferecidos, atingir

milhares de pessoas, levando-lhes conselho em forma de mensagem, de testemunho, de lição de vida.

Dar Bom Conselho nesta entrada do 3º milênio, seria adotarmos uma política permanente para que todos conheçam seus direitos sem deixar apagar-se a consciência dos deveres.

Terceira obra: Castigar com caridade os que erram

É o tema mais polêmico e desafiante a que somos chamados a refletir. O mundo que nos cerca converteu-se numa peça de guerra: Febem, Carandiru, franco atiradores, assaltos, corrupção na justiça, corrupção na polícia, narcotráfico, prostituição, insegurança, medo, cenário triste no qual estamos inseridos.

Algumas reflexões puderam incitar em nós algumas decisões:

a) O reconhecimento de que há erros, ofensas a valores, que é preciso castigar.

b) A afirmação explícita da ação de castigar tem de ser exercida com caridade, concientizando-se que só a caridade assegura a justiça e a eficácia do castigo, tem que ser vazada na firme convicção de que ele deve estar intimamente ligado à recuperação do homem para trazê-lo de volta ao convívio social.

c) A intervenção penal para ser justificada só pode ser assumida em termos de justiça e não de vingança. A imparcialidade do juiz deve fundamentar-se na separação entre violência e justiça, afirmando o direito na solução de um caso concreto sem perder de vista a paz social.

Quarta obra: Consolar os tristes desconsolados

Revalorizar a dimensão relacional e mental do homem é um dos desafios do mundo contemporâneo. O pensar relacional apreende os diversos níveis e elementos lógicos de compreensão da realidade: o específico e o geral; o concreto e o abstrato; o conjuntural e o estrutural; o nacional e o internacional; o micro e o macro; o particular e o comum; o público e o privado; é desenvolver a dinâmica afetiva das relações humanas. Superar a educação repressora que oprime a manifestação dos sentimentos e das emoções é tentar construir o homem, a família e a sociedade.

A dor do século é a dor mental, responsável pelas psicopatologias e subseqüentes somatizações. Aprender a conviver com o afeto de si para consigo, de si para com os outros e dos outros para consigo. Ficar atento à dimensão psicológica do indivíduo é processo de humanização, é o caminho que fundamenta as relações que quando interiorizadas e exercitadas vão se tornando espontâneas. Tristes os temos, consola-los é nossa mister.

Quinta obra: Dar de comer aos famintos

A sensibilidade e a sensibilização são caminhos que nos levam a redescobrir o valor da relação interpessoal. Sua ausência vem retirando qualidade humana a muitas de nossas atividades. As situações de privação e pobreza são, normalmente, situações de carência múltipla. A ordem social e econômica vigente gera pobreza, assume por vezes o papel de benfeitora e vem acudir a fome que ela mesma contribuiu para gerar.

Impõe-se como imperioso neste virar de século e milênio, reabrir-se a discussão sobre o destino dos bens da Terra. No prisma cristão, estes bens foram criados por Deus para servir a todos os homens. Temos de pôr um basta à acumulação desmesurada da riqueza e à corrente consumista que a todos destrói. Faz-se necessário dispensar uma atenção especial para reconstruir a nossa sociedade, tentando descobrir mecanismos que ela usa para excluir uma parte de seus membros ao acesso aos bens e serviço necessários à subsistência.

Com 840 milhões de pessoas passando fome ou enfrentando insegurança alimentar, estamos a conviver com um grande contraste inexplicável: de um lado situações de miséria e de fome, do outro, o aumento progressivo da riqueza nas mãos de uma minoria que cresce com o progresso científico e tecnológico.

Fica a interrogação: os organismos nacionais e internacionais, os governos, são parte da solução ou parte do problema?

Sexta obra: Dar de beber aos que têm sede

"Eu estarei diante de ti, sob o rochedo de Horeb. Baterás no rochedo e dele brotará água, então o povo poderá beber" (Ex. 17,5-6). As Obras de Misericórdia são de sempre e para sempre. Até a consumação dos séculos haverá uma voz para gritar a dor e outra voz que responderá ao apelo.

A água não é apenas fonte da vida física. Entre o homem e a água existe uma compenetração simbólica, como diz Luis Beirnaert: "Em todos os planos, cósmicos, antropológico e ritual, as águas fazem morrer e renascer. Elas são um abismo onde nos perdemos e uma matriz onde nos regeneramos. Quem bebe da água que lhe der, nunca terá sede".

As dimensões místicas e transcendentais da água foram contempladas por Tertuliano que assim se expressava: "Cristo nunca aparece sem água. Foi batizado na água". É a água que inaugura, nas bodas de Canaã os sinais de seu poder: convida os que têm sede a beber a água eterna.

Reconhece como obra de amor o copo d água dado ao povo; perto de uma fonte retempera suas forças; caminha sobre a água e a atravessa facilmente; lava com água os pés de seus discípulos; no seu corpo ele transporta o novo mar.

 

Fig.1. Durante o Congresso Mundial das Misericórdias, ocorrido em Santos em novembro de 2000, o conferencista Padre José Linhares, Presidente da Confederação das Misericórdias do Brasil, ao centro, recebendo uma comenda de Manoel Lourenço das Neves, Provedor da Santa Casa de Santos e organizador do conclave, situado à sua esquerda. (Foto J. E. Barbosa) 

 

Sétima obra: Dar pousada aos peregrinos e pobres
Há um direito inalienável, o de possuir uma habitação mínima e um rendimento mínimo.

É oportuno restabelecer-se o conceito de habitação como traço definitivo entre marginalização e integração; Os sem teto se convertem em denúncias vivas para todas as consciências cristãs e civilizadas. É simultaneamente, um apontar para a atual situação de fragilidade da justiça social e nos desperta para o exercício misericordioso e persistente de sonharmos com a oferta de condições de igualdade de oportunidades.

Finalizando, abram-se as portas do universo, deixe que o mundo peregrine e caminhe unido em busca da Misericórdia: 500 Anos - O Mundo Unido pelas Misericórdias.

 

O AUTOR: Padre José Linhares, é deputado federal e presidente da Confederação das Misericórdias do Brasil.

 

ENDEREÇO / ADDRESS: Deputado Pe. José Linhares Ponte, Câmara dos Deputados, Anexo IV, Gabinete 860, Brasília, DF, CEP 70160-900, Brasil.

 

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