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, 02 de maio de 2024.
01/06/2000
Volume 3 - Número 1
4 - A Santa Casa da Misericórdia do Porto

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A Santa Casa da Misericórdia do Porto

The Santa Casa da Misericórdia of Porto

Fernando Malheiros
Santa Casa da Misericórdia do Porto, Portugal

Malheiros F: The Santa Casa da Misericórdia of Porto. Acta Medica Misericordiæ 2000; 3 (1): 15-24

Resumo

A Misericórdia do Porto foi fundada em atendimento a uma carta de D. Manuel de 14 de Março de 1499. Três anos após, a Misericórdia do Porto estava instalada na Capela de Santiago, no claustro velho da Sé. Mais tarde, o mesmo monarca ordenou a anexação dos hospitais de Rocamador, de Santa Clara e os de Cima de Vila. Um rico fidalgo e sacerdote, D. Lopo de Almeida, legou à Misericórdia do Porto todos os seus bens e rendimentos em 1584, possibilitando a construção de um hospital a que foi dado o seu nome. O modelar Hospital de Santo António e diversos outros foram construídos. A Misericórdia veio a sofrer com a nacionalização de hospitais e congelação de rendas de prédios urbanos, provocadas pela Revolução de Abril de 1974. No presente, os hospitais começaram a ser devolvidos. Em que pesem as dificuldades, a Misericórdia do Porto ostenta, na ultima década, um desenvolvimento sem par, com modernização e crescimento. Em 1999, celebrou seu aniversário pentasecular. Nenhuma velhice do tempo ou uma qualquer traça destruidora da sua alma conseguirá ofuscar ou corroer as páginas grandiosas da sua história, enegrecer a actividade dinâmica da sua actualidade, travar-lhe o passo na caminhada crescente do futuro.

Descritores : Hospitais filantrópicos. História da Medicina. Humanismo. Educação médica.

Summary:

The Misericórdia of Porto was founded in response to a letter of request written by D. Manuel on March 14, 1499. Three years later, the Misericórdia of Porto was installed in the Chapel of Santiago, in the old claustrum of the See. Later, the same king determined that the hospitals of Rocamador, Santa Clara and Cima de Vila be annexed. Dom Lopo de Almeida, a rich nobleman and priest, left to the Misericórdia of Porto all his properties and revenues in 1584, making possible the construction of a hospital named after him. Later, Santo António Hospital and others were built. The Misericordian cause was hindered by the nationalization of hospitals and the seizure of income from urban building rents after the April Revolution in 1974. The returning of the hospitals to the Misericordian cause has begun. In spite of the difficulties, the Misericórdia of Porto has developed significantly throughout this last decade, with modernization and growth. In 1999, it celebrated its 500 th birthday. No age or soul-destroying moth will succeed in clouding or eroding the magnificent pages of Misericordian history, nor will its contemporary dynamic activities be darkened, or its step be halted in its quickening march towards the future.

Key words : Hospitals, voluntary. History of Medicine. Humanism. Education, medical.

A carta que D. Manuel I escreveu, aos Homens Bons e da governança do burgo portuense, é referência obrigatória, e primordial, para todos aqueles que procuram na História, o começo, a essência e os motivos da fundação da Santa Casa da Misericórdia do Porto. O Rei Venturoso, que a datou em 14 de Março de 1499, exprimia-se deste modo: «Cremos que sabereis como em esta nossa cidade de Lisboa se ordenou uma confraria para se as Obras da Misericórdia se haverem de cumprir, e especialmente àcerca dos presos pobres e desamparados que não tem quem lhes requeira seus feitos nem socorra as suas necessidades, e assim em outras muitas obras piedosas, segundo mais largamente em seu Regimento se contém, do qual vos mandamos dar o traslado.

E porque as Obras de Misericórdia, que por os oficiais desta Confraria se cada dia fazem, redundam em muito louvor de Deus, de que nós tomamos muito contentamento por se em nossos dias fazer, folgamos muito que em todas as cidades, vilas e lugares principais dos nossos Reinos se fizesse a dita confraria na forma e maneira que no dito Regimento se contém, e porém vos encomendamos que, considerando quanto isto é serviço de Deus vos queirais ajuntar e ordenar como em essa cidade se fizesse a dita confraria. E além de em isso fazerdes serviço a Deus, e coisa que ante Ele havereis muito merecimento, nós vo-lo agradeceremos muito e teremos em serviço».

O dia 14 de março de 1499 pode fixar-se como o do nascimento da Misericórdia do Porto. A recomendação régia, expressa naquela missiva, demonstração do espírito cristão, de caridade e solidariedade social, reinante na corte portuguesa, alicerçado e inspirado pela espiritualidade intensa da Rainha D. Leonor, foi determinante para que os homens do Porto, correspondendo, se organizassem. A sua motivação estava no culto do amor a Deus. A sua essência, a prática de actos piedosos, consubstanciados, genéricamente, nas Obras de Misericórdia, consideradas como serviço do reino e, sobretudo, como serviço de Deus.

O espírito que enformou o objectivo mais puro da Misericórdia do Porto e de todas as Misericórdias, o seu carácter e escopo, e que se exala do primeiro Compromisso, foi bem evidenciado por Júlio de Castilho, no texto maravilhoso que se transcreve: «ler esse Compromisso é estudar a aplicação prática dos mais santos, dos mais puros ditames do cristianismo. Alimentar famintos e sequiosos, vestir os que nem andrajos, sequer, possuem, para se cobrirem, levar a esmola de umas moedas aos presos e aos doentes, hospedar vagabundos, redimir do cativeiro os pobres soldados que o serviço da Pátria retinha nas Moiramas, dar o último leito em chão português aos portugueses desamparados; tudo isto já é muito e a Irmandade cumpria-o. Mas não se limitava a essas obras meramente corporais; sabia que a parte mais alta do ser humano, a alma, também padece (e bem cruéis) as suas sedes, as suas dores, os seus desamparos, as suas nudezas, os seus cativeiros, e como o sabia, a Irmandade consagrou a esses outros deveres espirituais os cuidados mais carinhosos.

Pelas prédicas espalhava o bom conselho e a doutrina sã, pelas escolas do seu recolhimento de orfãos ensinava a ignorância, pelas visitas aos hospitais e às cadeias, condimentava o pão negro do encarcerado; pela sua devota companhia aos condenados consolava as tristezas congénitas com o ser humano; pelas suas penalidades que o regulamento impunha aos contraventores dos deveres estatuídos, castigava os erros, filhos da nossa fraqueza moral; promovia (era letra expressa do Compromisso) pazes e reconciliações entre quaisquer pessoas que se soubesse andarem desatinadas e induzia-as a perdoar injúrias, em nome da caridade cristã; sofria, com paciência, os desmandos alheios; e, enfim, cumpridos em vida os deveres fraternais para com as almas, nem então afrouxava: continuava-lhos depois da morte, em sufrágios de todo o género. Se há nada mais espantoso do que este suavíssimo instituto da Misericórdia!».

Toda a solidariedade social da Misericórdia, tão diversificada nos seus meios de acção e tão universal nos desafortunados que socorre, reveste-se de uma característica singular que é bem a génese de toda a sua mística e de toda a sua produtividade: para serviço e louvor a Deus. A caridade cristã, só é autêntica e verdadeira, na medida em que o serviço que presta na doação aos outros, for uma expressão e um testemunho do amor de Deus. Ela tem um espírito, uma alma, que lhe advém da máxima de Cristo: «ide e curai os enfermos… foi a mim que o fizeste!». Toda a sua actividade, não haja qualquer confusão, não se pode reduzir a uma simples e fria assistência social aos desventurados. A caridade é uma virtude sobrenatural, e a Misericórdia, um farol sempre aceso e em rodopio, a despertar e a praticar a piedade cristã para todos os necessitados.

 

 
Fig. 1. Igreja da Misericórdia.   Fig. 2. Hospital de Santo António, cuja construção foi iniciada em 1770.
     
Fig. 3. Hospital do Conde de Ferreira.
Fig. 4. Hospital da Prelada Dr. Domingues Braga da Cruz, da Santa Casa do Porto.
     
     

 

CRESCIMENTO
CONSOLIDAÇÃO

Três anos após a carta do Rei Venturoso, a Misericórdia do Porto, já estava instalada na Capela de Santiago, no claustro velho da Sé, que se tornou, assim,

a sua primeira Sala de Despacho.

Entretanto, cinco décadas passadas, em terrenos localizados na Rua das Flores e doados à Santa Casa por uma benfeitora, que os benfeitores de muito cedo começaram a aparecer, já ali funcionava, em sede definitiva, e para tal construida, a Casa do Despacho, no ano de 1550. A Igreja, como o respectivo adro, foi solenemente benzida em 13 de Dezembro de 1559, pelo bispo da Diocese, D. Rodrigo Pinheiro.

Enfrentaram muitas dificuldades, algumas bem duras de ultrapassar, os homens caridosos do burgo portuense que administravam a Misericórdia nos anos do seu alvorecer. Não fora a protecção carinhosa de D. Leonor e, ainda mais, a magnanimidade do Rei D. Manuel, que lhe conferiu muitos previlégios, e teria sossobrado.

O primeiro grande impulso para o seu alargamento e consolidação veio à Misericórdia pela carta régia de 15 de Maio de 1521, em que o mesmo Monarca, poucos meses antes de morrer, verificando que a «Confraria da Misericórdia da cidade do Porto» era bem regida e governada, e se não dispensava mais caridade aos pobres era por não ter rendimentos, ordenou a anexação dos «Hospitais de Rocamador e de Santa Clara, e os de Cima de Vila, com todas as suas rendas e heranças». A despeito da renitência da Câmara, a quem competia, até então, a administração daqueles hospitais, muito antigos, começou a Santa Casa a receber doentes, e a providenciar, de graça, o seu tratamento, sobretudo no Hospital Rocamador (também de Roque de Amador), localizado à esquina da Rua das Flores (só aberta no século XVI e denominada de "Santa Catarina das Flores") com a Rua dos Caldeireiros (antiga Rua do Souto, de que ainda se conserva parte do outro lado da Rua de Mouzinho da Silveira) onde, mais tarde, aos 8 de Fevereiro de 1608, começou a ser levantado o Hospital de D. Lopo de Almeida.

De entre os muitos hospitais e albergarias, já existentes no pequeno aglomerado portuense, na Idade Média, os que passaram à Misericórdia por força da carta régia, trouxeram-lhe importantes rendas e valores, proporcionando uma actividade estável, muito alargada e resultando numa renovação visível do entusiasmo e da confiança, por parte dos elementos da sua Mesa Administrativa.

MUITOS BENFEITORES

Desde os seus alvores, começaram a aparecer beneméritos, para a Santa Casa da Misericórdia do Porto. O Rei D. Manuel, bem como a Rainha D. Leonor, além do carinho particular demonstrado na concessão de muitos previlégios e isenções, fizeram-lhe varias doações e esmolas. De realçar D. Branca Dias, a primeira benfeitora da Santa Casa, com diversos bens nas terras da Maia; o picheleiro Nuno Rodrigues, mencionado e, até, agradecido por D. Manuel, em 1504; Belchior Pais, portuense, que, em testamento, lhe deixou boa parte de seus haveres, em 1543; D. Manuel de Noronha, bispo de Lamego, que fez um legado, em 1541, para resgate de cativos, dotação de orfãs e protecção a meninos desamparados. O caudal das dotações ia engrossando, sempre, com esmolas e legados que lhe vinham de portuenses falecidos no Oriente, entre os quais sobressai, em 1582, o denominado «Rico de Ormuz» Manuel Fernandes de Calvos, portuense falecido na Índia, e que lhe deixou parte importante da sua fortuna.

De entre todos os benfeitores da Santa Casa, avulta a figura de D. Lopo de Almeida, fidalgo riquíssimo, sacerdote, capelão do

Rei D. Filipe II, falecido em Madrid a 29 de Janeiro de 1584. Legou à Misericórdia do Porto todos os seus bens e rendimentos, que constituiu sua universal herdeira na pessoa dos pobres, a quem ordenou a construção e manutenção de um Hospital, e de uma Capela, onde estivesse o Santíssimo Sacramento continuamente alumiado, de noite e de dia, sem nunca faltar a luz e onde houvesse um capelão, para assegurar a Missa em todos os dias.

Como a Igreja da Misericórdia, por não haver recursos suficientes, ainda não tinha Capela-Mor e, ainda mais, porque, tendo-a visitado, um dia, D. Lopo lamentara que a não tivesse, a Mesa tratou logo do seu projecto e construção para dar cumprimento a uma parte, considerada muito importante, do testamento. Construida, de imediato, de acordo com um debuxo do pedreiro Manuel Luís, o mesmo que, anos antes, desenhara e construira a Igreja, a Capela-Mor serviu, em 19 de Julho de 1589 (cinco anos depois da sua morte) para depositar, perpetuamente, os restos mortais de D. Lopo de Almeida, vindos de Madrid e para ali conduzidos em magestoso cortejo, desde a Ermida ou Capela de Nossa Senhora da Batalha, fora das portas de Cima de Vila, numa homenagem bem sentida e de gratidão, prestada por todas as gentes do Porto. A outra parte do testamento de D. Lopo de Almeida, no que concernia ao tratamento de doentes pobres, começou a ser cumprida logo no inicio de 1585, pelo seu internamento no Hospital de Rocamador. Sómente

passados alguns anos, em 8 de Fevereiro de 1605, foram começadas as obras de um novo edifício para o que haveria de ser o Hospital de D. Lopo, nos terrenos da Albergaia de Rocamador, e que, entretanto, foi desaparecendo para dar lugar ao novo, vasto e magestoso, com colunas artísticas no pórtico, com átrio espaçoso e uma larga escadaria, para acesso à parte superior.

Todas as obras foram bem pensadas, executadas com mestria, em condições de servirem, perfeitamente, aos seus fins, e com todas as características indispensáveis a uma longa duração.

Nos seus estabelecimentos hospitalares e em toda a sua actividade assistencial e administrativa, a Misericórdia do Porto realizava os seus fins - o exercício de todas as Obras de Miserdicórdia - dela beneficiando todos os desafortunados, não só habitantes da cidade, mas também os que lhe apareciam, especialmente para cuidados de saúde, vindos de muitas terras distantes.

Também no rodar dos anos, e depois da morte do Rei D. Manuel, foram muitos e variados os entraves que a Misericórdia sustentou contra a sua acção livre e independente, contra a sua autonomia, seus previlégios e isenções, até com actos que, em certos casos, se poderiam apelidar de prepotência. Sempre, porém, Provedor, Mesários e Irmãos, enfrentando as pessoas e destruindo os seus intentos, pugnaram aguerridamente pela autonomia e prerrogativas da Misericórdia, e conservaram a sua total independência, face a poderes públicos e, até, religiosos. De par, surgiram também, de quando em vez, dificuldades financeiras: eram os rendimentos que diminuiam, as despesas crescendo com o atendimento de mais doentes, os legados que rareavam mais, em certos anos. Mas, e apesar de tudo, os caminhos da caridade continuavam a ser percorridos pela Santa Casa, alargados, ganhando novas direcções, atendendo todas as necessidades, tantas como as que cabem nesse código maravilhoso, e, que dele se ramificam: as Obras de Misericórdia.

 

Fig. 5. Alçado da fachada da Igreja da Misericórdia do Porto, de Nicolau Nazoni, em papel, circa 1740.

 

UM MONUMENTO À CARIDADE

Na segunda metade do século dezoito a população do Porto crescera muito e o Hospital D. Lopo já não era suficiente para recolher os doentes que, de toda a parte, a ele acorriam. Em 1769, o arquitecto inglês John Carr tem pronto o projecto que a Mesa da Misericórdia lhe encomendara e, em 15 de Julho do ano seguinte, foi benzida e lançada a primeira pedra do que seria o Hospital de Santo António. O terreno fora adquirido, pela Santa Casa, para esse fim. O projecto, que não chegou a executar-se sequer em metade, era de uma grandiosidade assombrosa. Nos cofres da Santa Casa não havia dinheiro. Não hesitaram, contudo, os Irmãos, em iniciar a construção, pois sabiam que a caridade opera os milagres mais estrondosos e que o Porto foi, sempre, desde o seu alvor, a terra do altruismo, da solidariedade, da Caridade autêntica, afinal. Os primeiros doentes, em número de 150, transferidos do Hospital de D. Lopo, deram ali entrada a 19 de Agosto de 1779.

Nos fins do século dezoito a Misericórdia do Porto, já com dois mil irmãos inscritos no seu Tombo, era, sem qualquer exagero, «um monumento de piedade para todos os miseráveis».

Nessa época já a Misericórdia administrava, para amparo dos pobres e refrigério dos doentes, além do Hospital denominado «Novo» (o de Santo António), o Hospital de D. Lopo na Rua das Flores, o dos Expostos (a Roda) na Rua dos Caldeireiros, o dos Entrevados em Cima de Vila, o das Entrevadas em Santo lldefonso, o dos Lázaros e das Lázaras perto do Jardim de S. Lázaro, bem como o Recolhimento de Órfãs de Nossa Senhora da Esperança, além de prestar dotações à orfandade e à viuvez, de socorrer com médicos, enfermeiros e remédios os presos da Cadeia Civil do Porto, aos quais oferecia também a assistência religiosa, de tratar gratuitamente mais de dois mil doentes cada ano e, também anualmente, amortalhar e dar enterro cristão a mais de quatrocentos mortos.

A onda da caridade, porém, ia crescendo, pois que a generosidade dos portuenses lhe acrescentava, continuamente, mais doações, de modo a tornar mais eficiente, mais magestoso e mais belo, esse monumento à miséria que andavam a levantar: a sua Misericórdia. É assim que, no século dezanove, sobretudo no seu último quartel, e no primeiro do nosso século, outras instituições vieram enriquecer a obra assistencial da Santa Casa, alargando muito o manto de amparo maternal sobre todos os que precisavam do seu carinho: foi o Estabelecimento Humanitário do Barão de Nova Sintra, o grandioso Hospital de Alienados do Conde de Ferreira, a administração do Hospital do Bonfim ou de Guelas de Pau, o Instituto para Surdos Mudos de Araújo Porto, o Asilo de Cegos de S. Manuel, o Lar de Monteiro dos Santos, o Bairro Monteiro dos Santos e a sopa com o nome do mesmo benfeitor, a Escola de Cegos do Porto, o Sanatório-Hospital de José Rodrigues Semide, o Hospital para Convalescentes da Quinta da Prelada, o Lar de Pereira de Lima para idosos invisuais… Mas ainda administração das Bolsas de Estudo de Bruno Alves Nobre bem como a distribuição de esmolas, do mesmo instituidor, aos doentes que saissem, com alta do Hospital de Santo António; instituição e organização dos Socorros Domiciliários que se estendiam a toda a cidade, dividida en sete zonas (1901); a sua notável cooperação no ensino da Medicina e suas especialidades (o Hospital de Santo António serviu de Escola Médica durante 130 anos!); o relevante apoio prestado à Saúde, com a sua Escola de Enfermagem, e às alunas, vindas do interior, com o Lar; a instituição da Cruzada de Sangue; do Instituto Psiquiátrico Infantil Dr. Dias de Almeida; a sua contribuição aos problemas da deficiência visual com a criação da Imprensa Braille; e tantas outras acções, e fundações benemerentes, com as quais a Santa Casa deu corpo ao conteúdo sagrado do Compromisso primitivo e que apontava para o exercício continuado e perpétuo de todas as Obras de Misericórdia.

Depois de meados do nosso século, procedeu, a Misericórdia, à revalorização, aproveitamento e enriquecimento do seu património, em ordem à obtenção de maior rendimento e como contributo à resolução das carências de habitação na cidade, com a construção de vários e grandes blocos residenciais, localizados em diversos pontos, bem dimensionados, modernos, com as características indispensáveis à melhoria da qualidade de vida dos seus inquilinos. Também deu o seu contributo ao turismo e a ocupação sadia dos tempos livres, com a instalação de um parque de campismo, modelar, na quinta de Prelada. Desenvolveu e alargou a sua prestação ao ensino e à protecção da orfandade, construindo novos pavilhões no Colégio de Nossa Senhora da Esperança e tornando-o uma obra ímpar na cidade, pelo apoio que oferecia às famílias, amparando-lhes os filhos desde o estádio de criancinhas inocentes até à maioridade. Criou mais uma unidade para idosos na Quinta do Marinho. Projectou o desenvolvimento da sua actividade no campo da saúde e começou a construir o Hospital Centro de Reabilitação da Prelada para as valências de Orto-Traumatologia, Cirurgia Plástica e Reabilitação Funcional.

Continuando a atender, pontualmente, a todos aqueles que recorrem à sua protecção, nas mais díspares e variadas circunstâncias, e, mantendo, com religioso respeito, todos os seus encargos, quer sociais, quer caritativos, quer ainda religiosos, determinados pelos beneméritos doadores, no decurso de todos os tempos, a Misericórdia do Porto foi crescendo, tornou-se, cada vez mais, o magestoso monumento à caridade e, de tal modo, que à sua sombra benfazeja, ainda em nossos dias, é lenitivo à dor, que refresca e alivia, e é pão para o faminto, quer na fome do corpo, quer na fome do espírito, quer, também, na do coração.

 

Fig. 6. "Fons Vitae" de autoria desconhecida, provavelmente de
escola flamenga, em óleo sobre madeira de carvalho, 1518-1521.

 

LUTA PELA SOBREVIVÊNCIA

O Decreto-Lei n.º 704/74 de 7 de Dezembro, bem como diversas medidas, publicadas no nosso país, após a Revolução de Abril, geradas, sobretudo na época gonçalvista, acarretaram à Misericórdia do Porto, sérios e graves problemas, provocando-lhe uma crise agudíssima, que afectou profundamente a sua estabilidade, pôs em causa a sua grandeza magestosa e, não menos, o seu prestígio secular.

A crise ramificou-se em variados cambiantes, de pendor moral, material e financeiro e resultou, fundamentalmente, da nacionalização dos seus Hospitais - Santo António, Conde de Ferreira, Rodrigues Semide, - de medidas legislativas que nacionalizaram acções que a Misericórdia detinha em importantes empresas privadas, pela extinsão dos rendimentos de foros, congelação de rendas de prédios urbanos, etc. Foi, porém, a apoderação da actividade nos Serviços de Saúde nos seus hospitais, por muitos considerada, e bem, como um monstruoso esbulho, o golpe, que, moralmente, feriu mais profundamente a dignidade da Misericórdia e a integridade da sua presença naquele domínio assistencial, já secular. Ainda mais, porque se olvidou, grosseiramente, que a Santa Casa do Porto sempre tratou doentes em seus Hospitais, desde os tempos do Rocamador, que demorou 140 anos a concluir o de Santo António, um dos melhores monumentos da nossa cidade, à custa de tantas canseiras, e também, de barato, se postergou o facto de ela ter sido pioneira na assistência psiquiátrica ao Norte, com o Hospital do Conde de Ferreira, bem como se desconheceu a realidade de o Hospital de Rodrigues Semide ter sido o primeiro, no tratamento da tuberculose. E nem reflectiram, esses poderes nacionalizantes em que, todos estes hospitais foram construidos, sómente, graças às doações de grandes beneméritos, sem comparticipações, e sempre dirigidos e administrados pela Misericórdia. E tudo se tornou ainda mais vergonhoso e indigno pela decisão de a cedência dos imóveis hospitalares ter sido feita a título gratuito e, dolosamente, atribuido ao desejo manifestado por Mesas da Misericórdia, numa grosseira mentira, que nunca teve, nem terá, aceitação, por parte de qualquer pessoa conhecedora, ainda que superficialmente, do espírito que anima e dá força, aos homens bons que se entregam ao serviço das Santas Casas. Posteriormente, com outros homens na governação do reino, pela atribuição de uma renda pela ocupação dos edifícios, em parte, o mal foi reparado, em atitude de limiar justiça, muito embora o esbulho continue e os seus prejuízos perdurem e se façam sentir na actividade da Misericórdia e na qualidade dos cuidados de saúde.

Entretanto, no presente, os hospitais começaram a ser devolvidos às Santas Casas, suas proprietárias.

 

Fig. 7. Nossa Senhora da Misericórdia em óleo sobre madeira, século XVII.

 

RENOVAR E MODERNIZAR
CRESCER

Pesem embora as dificuldades e os entraves, apesar de tudo, como pela graça de um autêntico milagre, a Misericórdia do Porto ostenta, na última década, um desenvolvimento sem par que opera em diferentes direcções. Foi a conclusão e a abertura do Hospital da Prelada-Dr. Domingos Braga da Cruz, uma unidade de saúde magnífica, equipada com os melhores recursos humanos, com as técnicas mais sofisticadas e com serviços personalizados, onde o respeito pelas pessoas doentes, a qualidade do tratamento e o humanismo que o envolve são referência única entre o que de melhor existe no nosso país. Foi a elaboração e a concretização de um plano de habitação social, em terrenos subaproveitados da Instituição, para cobertura de uma rede de carências enormes de moradia para famílias de parcos recursos e inúmeras obras de beneficiação e de modernização no património imobiliário de arrendamento para que os inquilinos pudessem usufruir de condições sadias e funcionais de habitabilidade. Foi a renovação dos edifícios onde se sediam os estabelecimentos de apoio social, de educação e de ensino normal e de deficientes, não só com volumosas obras de construção civil e adaptação mas, nomeadamente, pela introdução de técnicas mais modernas e de maior eficiência na actuação. Foi a concretização de um Centro de Formação Profissional autónomo que integra a preparação inicial de jovens para o emprego ou para a criação da sua própria empresa, a formação ou aperfeiçoamento de jovens e de adultos desempregados, a realização de acções de qualificação profissional, voltadas a indivíduos da cidade e dos arrabaldes, bem como a organização de cursos de preparação e de qualificação para todos aqueles que, nas diversas áreas, prestam serviços dentro da própria Misericórdia. Foi a criação de estruturas qualificadas para a preservação e restauro do património artístico, monumental, cultural, arquivístico e documental, cujos benefícios são colhidos pelos historiadores, cientistas e alunos universitários que procuram os arquivos e os monumentos e por inúmeros visitantes, nacionais e estrangeiros, que visitam a Santa Casa nas suas viagens de estudo e de turismo. Foi a reestruturação de todos os serviços administrativos e funcionais, com proveitos visíveis a todos os níveis, designadamente na poupança e na eficiência. Foi o alargamento da assistência às pessoas da idade dourada, pela criação de um novo Lar e pela modernização total de mais dois, obras emblemáticas, espelhos onde transparece, diáfano e cristão, o respeito pela dignidade da pessoa humana. Foi a preocupação constante de obras e adaptações em todos os outros Lares e equipamentos sociais para que os utentes usufruam, sempre, as melhores condições de estadia e sintam como são atendidas as suas necessidades e anseios. Foi a organização de um serviço de apoio domiciliário de anciãos e dependentes onde o aconchego e o carinho são a marca de uma ajuda integrada sempre atenta e sempre pronta. Foi a instituição da Casa da Rua, uma novíssima obra da Misericórdia, para oferecer uma beira limpa, confortável, e um prato de comida fumegante, aos marginalisados e toxicodependentes que dormem no relento e que, na Casa, podem encontrar uma porta aberta à reinserção profissional, familiar e social. Foi o Centro de Alojamento de Emergência para idosos, ultimamente organizado, para obstar aos abusos e aos desprezos que ferem muitos anciãos em lares desrespeitadores e desumanos. Foi o Centro de Acolhimento de Mulheres vítimas da violência doméstica e de seus filhos pequenos, em construção, sucedâneo de uma obra de apoio à mulher marginalizada. Foi, finalmente, a retoma do monumental Hospital de Alienados do Conde de Ferreira, um edifício magnífico, implantado numa enorme propriedade, apta ao lazer, à agricultura e à floricultura, bem como à produção de flores e de plantas ornamentais que, devolvido à Santa Casa pelo Ministério da Saúde de Portugal, após volumosas obras de adaptação, vai integrar, para além de uma unidade de saúde mental com suporte científico investigatório de ligação à Faculdade de Medicina, outros centros de apoio e de cura, paradigmáticos, voltados para os problemas sociais e de saúde modernos, como seja a toxicodependência, a sida, o alcoolismo e os doentes em fase terminal.

 

Fig. 8. "Visitação", de Diogo Teixeira, retábulo da capela de Santa Isabel, em óleo sobre madeira de castanho, 1591-1592.

 

CELEBRANDO O MEIO MILÉNIO

Neste ano de 1999 a Santa Casa da Misericórdia do Porto está a celebrar o seu aniversário pentassecular, comemorando, por entre a reflexão e a festa, uma caminhada longa e íngreme, sempre gloriosa, de prestação benfazeja e solidária a favor de todos aqueles que, durante tão longínquo percurso, lhe iam aparecendo nas valetas das doenças, das prisões, das pobrezas, das marginalidades, para os quais se fez a samaritana atenta, ajudando a curar e a levantar, apoiando e dando a mão, recolhendo e aconchegando carinhosamente, sempre no contexto da máxima cristã de descobrir e encontrar Cristo em cada um dos irmãos em necessidade.

A reflexão, neste ano jubilar do meio milénio, fez regressar a leitura às fontes, à pureza das origens, à simplicidade do primeiro Compromisso, para haurir e renovar o melhor do seu espírito, o mais lídimo e o mais original, para rejuvenescer a Santa Casa, para dinamizar a essência e a motivação, a alma e a finalidade, fazendo-a mais abrangente, mais actuante, mas, e também, uma Instituição que, rica de anos e de serviços, saiba adaptar-se aos problemas sociais emergentes dos tempos que vivemos. O que, aliás, é uma constante da sua história pentassecular: soube caminhar ao encontro de todas as carências, há-de contornar as do nosso século e as do século vindouro, neste mundo novo das tecnologias, das descobertas e das conquistas, da globalização e dos seus males, para encontrar de entre os meandros do egoismo individualista e social generalizado, as vias e os meios adequados, eficientes, do apoio a prestar.

Elas, as Santas Casas, a do Porto e as outras, saberão encontrar, sempre, os cantos e os recantos onde o homem se embrenha na busca de novas vivências, porque o amor aos outros da mensagem evangélica nunca mais terá fim e saberá moldar-se, em cada momento, para sanar dificuldades, atropelos, insucessos.

Para além do regresso às origens, da refontalização, da dinâmica de modernização e de crescimento, a Misericórdia do Porto também organizou a sua festa aniversária, à medida do número de anos, com muita dignidade, com alguma pompa, com muitos actos religiosos, culturais e sociais. Foi uma Eucaristia Soleníssima, na sua Igreja Monumental, antiga e artística, presidida pelo Senhor Bispo da Diocese, D. Armindo Lopes Coelho, participada por representantes de quase todas as Misericórdias do Pais e das Regiões Autónomas; foi um cortejo processional, da Santa Casa à Sé Catedral, com grande acompanhamento e inúmeras bandeiras e estandartes a percorrer as ruas da cidade, e a fixação de uma lápide comemorativa da efeméride, no claustro antigo onde esteve instalada a sede da Instituição; foi um cortejo popular, medieval, muito participado, representativo dos costumes do burgo portuense ao tempo da fundação da Santa Casa; foi uma sessão solene com a presença das entidades mais representativas do país e da cidade; foram conferências, concertos musicais, coros, saraus, tanto na Igreja da Misericórdia, como na Galeria dos Retratos dos Benfeitores, como em outros salões nobres do Porto; foi uma Exposição de peças de Ourivesaria e de Paramentaria, pertença do património artístico da Santa Casa; foi uma Exposição de documentos e manuscritos antigos, de incunábulos, de pinturas e de esculturas de autores renomados, pertença da Instituição; foi uma presença contínua nos Orgãos de Comunicação Social com a história, a actividade e os projectos da Misericórdia do Porto.

A celebração do Meio Milénio da Santa Casa da Misericórdia do Porto "foi um regresso aos altares do passado, não apenas para o celebrar ou revolver-lhe as cinzas, como escreveu Ivo Arzúa Pereira. Mas, outrossim, e principalmente, para reavivar a chama da Obra das Misericórdias, reaquecendo a mente e o coração dos cristãos e dos homens de boa vontade de todos os povos, e para iluminar, com o fulgor da fé e da esperança, os alcandorados caminhos do futuro para toda a humanidade".

A cidade do Porto e toda a região envolvente, terra solidária com gestos de sólida e fecunda fraternidade, tem como suporte máximo, activo e dinâmico, do seu amor aos outros, a sua Misericórdia pentassecular. Nenhuma velhice do tempo ou uma qualquer traça destruidora da sua alma conseguirá ofuscar ou corroer as páginas grandiosas da sua história, enegrecer a actividade dinâmica da sua actualidade, travar-lhe o passo na caminhada crescente do futuro.

 

O AUTOR: Sr. Fernando Malheiros, membro da Santa Casa da Misericórdia do Porto, Portugal, foi indicado para escrever o presente trabalho pelo Sr. José Luís Novaes, Provedor da Irmandade.

ENDEREÇO / ADDRESS: Fernando Malheiros, Santa Casa da Misericórdia do Porto, Rua das Flores, 15, Apartado 6018, 4051 Porto Codex, Portugal, telef. 2000941, fax 2050116.

 

ILUSTRAÇÕES: As ilustrações deste artigo foram enviadas pelo Sr. Fernando Malheiros.

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