Rede Corporativa
, 25 de abril de 2024.
06/06/2006
Volume 3 - Número 2
2- Discurso de abertura do Quinto Congresso Brasileiro de História da Medicina

PDF file at the end of the article

Arquivo PDF ao final do artigo

Discurso de abertura do Quinto Congresso Brasileiro de História da Medicina

Opening speech for the Fifth Brazilian Congress of the History of Medicine

Carlos da Silva Lacaz
Presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina. Museu Histórico "Carlos da Silva Lacaz" da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Instituto de Medicina Tropical de São Paulo.

Lacaz CS: Opening speech for the Fifth Brazilian Congress of the History of Medicine. Acta Medica Misericordiæ 2000; 3 (2): 51-54

Resumo:

Tenho a honra, o prazer e o privilégio de declarar abertos os trabalhos do V Congresso Brasileiro de História da Medicina, ocasião propícia para que eu preste minhas homenagens à cidade de Santos, à sua Santa Casa da Misericórdia fundada em 1543 por Braz Cubas e ao nosso distinto colega Henrique Ivamoto e sua valorosa equipe. Ao ensejo desta ocasião, seja-me permitido, também, como presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina, proferir algumas palavras sobre o médico face à atual situação do mundo. De um lado é ele extremamente rico, devido ao progresso da tecnologia. De outro, é ele muito pobre, o que se deve em parte, ao menos, ao fato de que o coração e a alma do homem não mudaram no decurso do desenvolvimento material. Eu ainda creio, no entanto, que, ao lado das grandes forças egoístas que vivem no coração dos homens, jazem ali tesouros imensos de altruísmo e de fraternidade, que a vida há de fazer desabrochar. O médico trata de vidas humanas e não de valores econômicos. José Martins Fontes nasceu em Santos em 1884 e cursou a velha e tradicional Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Boêmio, irrequieto, marcava sua presença por onde passava. Sua tese, defendida em 1908, foi um sucesso, tal o número de amigos e colegas que afluíram ao local da argüição. Em 1911, voltou para Santos, trabalhando nesta Santa Casa. Cantou em versos a riqueza das flores, da fauna, dos mares, dos rios e das mulheres do Brasil. Transformou sua terra natal em tema do lirismo e de saudade. Em 1923, a convite do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, vem a São Paulo para uma conferência e agraciação no Teatro Municipal. Em 1937, vítima de uma septicemia, falece o eminente santista, encerrando a vida do famoso vate. (Discurso proferido na Santa Casa da Misericórdia de Santos, em 16 de novembro de 2000).

Descritores: História da Medicina. Hospitais filantrópicos. Filosofia médica. Humanismo.

Summary:

I have the honor, the pleasure and the privilege to declare open the Fifth Brazilian Congress of the History of Medicine, an appropriate occasion to pay homage to the city of Santos, to the Santa Casa da Misericórdia founded in 1543 by Braz Cubas and to our distinct colleague Henrique Ivamoto and to his valuable team. On this occasion, I wish, as President of the Brazilian Society of the History of Medicine, to say some words about the physician faced with the present world situation. On the one hand, he is extremely rich, due to the technological progress. On the other hand, he is very poor, due, in part, to the fact that the heart and soul of man have not changed during the course of material development. I do believe, however, that, in spite of the great egotistim living in men's hearts, large treasures of altruism and fraternity also reside there, which life will make blossom. Physicians treat human lives and not economical values. José Martins Fontes was born in Santos in 1884 and studied at the old and traditional Medical School of Rio de Janeiro. Bohemian, restless, his presence was felt whereever he went. His thesis, defended in 1908, was a success, so great was the number of friends and colleagues that attended the presentation. In 1911 he returned to Santos, working in this Santa Casa. He chanted in verses about the richness of flowers, fauna, the seas, rivers and women from Brazil. He transformed his birth land in a theme of liricism and nostalgia. In 1923, at the invitation of the Oswaldo Cruz Academic Center, he came to São Paulo for a conference and homage at the City Theater. In 1937, victim of a septicemy, the eminent physician and famous poet died. (Speech made at Santa Casa da Misericórdia of Santos, on November 16, 2000).

Key words: History of Medicine. Hospitals, voluntary. Philosophy, medical. Humanism.

Tenho a honra, o prazer e o privilégio de declarar abertos os trabalhos do V Congresso Brasileiro de História da Medicina. Estou certo do sucesso deste evento que se deve aos esforços de nosso colega Dr. Henrique Seiji Ivamoto, auxiliado pelo Dr. Celso Schmalfuss Nogueira, Dra. Rosilene Morales e sua valorosa equipe.

Enalteço o elevado significado deste Ato, motivo de justificado orgulho para quem vos dirige a palavra, na qualidade de Presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina.

A ocasião é propícia para que eu preste minhas homenagens à cidade de Santos, à sua Santa Casa de Misericórdia fundada em 1543 por Braz Cubas e ao nosso distinto colega Henrique Seiji Ivamoto, tudo na pessoa do médico e poeta maior desta cidade - José Martins Fontes (23.06.1884 / 25.06.1937).

Ao ensejo desta ocasião, seja-me permitido, também, como presidente da S.B.H.M. proferir aos prezados colegas algumas palavras sobre o médico face à atual situação do mundo em que vivemos. De um lado é ele extremamente rico, devido ao progresso da tecnologia baseada na ciência pura. De outro, é ele muito pobre, porque é superpolitizado, supersupervisionado, super-burocratizado e este lamentável estado de coisas se deve em parte, ao menos, ao fato de que o coração e a alma do homem não mudaram no decurso do desenvolvimento material, o anseio do poder constituindo, ainda, a mola propulsora que conduz às posições capitais na sociedade humana. Eu ainda creio, no entanto, que, ao lado das grandes forças egoístas que vivem no coração dos homens, jazem ali tesouros imensos de altruísmo e de fraternidade, que a vida em comum há de fazer desabrochar cada vez mais.

Desejo ressaltar o alto significado deste Encontro. Vivemos, indiscutivelmente, uma hora dramática da humanidade, com a transmutação radical e repentina de todos os nossos valores tradicionais. Já o anunciara Nietzsche, há mais de meio século, pela boca profética de seu Zaratrusta, embora não pudesse, em sua visão genial, nem de longe prever o alcance e a amplitude ou o módulo acelerado dessa revolução total em que se debate, angustiado e como que perdido, o espírito humano. O certo é que tudo se desmorona ao embate incessante de novas forças incontroláveis. Daí, o brado emocionante de Paul Valery - "nós, civilizações, agora sabemos que também, somos mortais". "A humanidade vive hoje, sob o signo da técnica, sob o esplendor das conquistas materiais, sob o crescente mundo da ciência e, paradoxalmente, em contrapartida, da maré montante da violência organizada, da escalada das tragédias e das mortandades, na dança do ódio, do desespero e da destruição dos valores fundamentais do homem e do convívio civil. Há um desafio aberto e diuturno, crescente, sangrento, das mais variadas formas de violência, traduzidas em atentados, em crimes de seqüestros, pirataria aérea e marítima, em guerras e assaltos, em banhos de sangue, num atestado eloqüente do naufrágio da própria ciência, do império do Direito e da falência das condições necessárias da comunhão humana. Este fenômeno do desamor, da brutalidade, do desespero e do sangue, estende-se a todos os quadrantes do mundo, divide os próprios irmãos, golpeia as mais antigas instituições jurídicas, rastreia de ódio as próprias religiões e parece resumir, como numa cena apocalíptica, o epílogo irreversível da derrota do próprio homem. A hora é horizontal como um réptil. Escura, como noite invernosa; traiçoeira como areia movediça. Como Jó, clamamos todos pela aurora".

Como é bela a nossa profissão - a do pesquisador da área biomédica ou a do profissional que busca minorar o sofrimento humano, nos laboratórios ou nas enfermarias, trazendo um pouco de esperança a cada desespero, a cada desesperado. Esta é a nossa missão, atendendo aos desamparados de todas as cores e de todos os credos, nunca esquecendo, sob qualquer pretexto, os valores transcendentais da assistência aos que sofrem. O médico é um profissional que trata de vidas humanas e não de valores econômicos.

Miguel Couto, mestre da bondade e do civismo, referia com razão: "Todas as façanhas dos conquistadores não valem uma página da obra de Pasteur". Como é verdadeira, meus amigos, esta belíssima frase. Tudo o que é individual passa sobre a terra. Só o que traz o selo do interesse geral e o desprendimento das coisas espirituais consegue vencer o tempo e dar beleza e sentido à correnteza da vida. Enquanto estamos procurando preservar a humanidade, os que fazem e preparam as guerras estão praticando o extermínio. A Medicina é bondade piedosamente organizada; a guerra, a maldade cruelmente instituída. Uma vive da dedicação e do altruísmo; a outra se nutre da rapinagem e da carniça. Numa entre o homem com a porção divina do seu ser; na outra, o homem com os seus instintos atávicos de fera. Uma é a vida, a outra é a morte.

A Medicina é, indiscutivelmente, a mais bela, a mais humana, a mais augusta, a mais sacrossanta e a mais divina de todas as profissões. Divinum opus est sedare dolorem. Esta frase encerra as mais belas expressões da alma humana. Vivendo do sofrimento humano, ela cuida do corpo e da alma do doente, mas também encara a morte, sempre triunfante, imbatível e incombatível.

A maior grandeza de nossa profissão, disse Aloisio de Paula, reside neste movimento primitivo, o bíblico, do que pede e do que dá. É o gesto de todos os tempos que assegura a perenidade da nossa profissão através das vicissitudes do mundo contemporâneo. A medicina nos põe, também, em contato com o primitivo de todas as coisas e com a realidade tangível da morte. O ato médico é sempre um ato de amor. Por isso, disse Moliére no passado: Love is the best doctor. Eu ainda acredito no lado sacerdotal ou teocrático de minha profissão. Nós somos os sacerdotes do bem, praticando a filantropia da fraternidade, atendendo o rico, o pobre, o desvalido de todas as cores e de todos credos, fazendo lourejar pelas estâncias da vida os reflorestamentos da saúde, abrindo larga brecha na claridade benéfica das consolações.

Agora, Senhores e Senhoras, voltemos um pouco nossa atenção para o poeta e médico santista José Martins Fontes, homenageando esta fabulosa cidade de Santos. Zezé Fontes, assim ele era carinhosamente chamado, aqui nasceu a 23 de junho de 1884, filho de um médico positivista Silvério Fontes, natural de Aracajú. Fez o Ginásio Nogueira da Gama, em Jacareí, indo para o Rio de Janeiro, onde cursou a velha e tradicional Faculdade de Medicina, fundada em 1808 por D. João VI, graças ao apoio do cirurgião-mor do reino José Correia Picanço. Boêmio, irrequieto, marcava sua presença por onde passava. Poeta primoroso, foi amigo de Olavo Bilac, Coelho Neto e Emílio de Menezes. Morava na Pensão da Conceição, no Catete. Diplomou-se em 1907, tendo sido orador da turma. Paraninfo, o Prof. Abreu Fialho, catedrático de Oftalmologia.

Sua tese, defendida em 1908 - "Da imitação em síntese", foi um sucesso de bilheteria, tal o número de amigos e colegas que afluíram ao local de argüição. O Museu Histórico da Faculdade de Medicina possui cópia xerografada dessa tese, graças a Rui Calisto, o grande estudioso da vida e obra de Martins Fontes. Diplomado, foi para o Acre, onde ficou pouco tempo. Voltou em 1911 para sua terra natal que ele tanto amava, trabalhando na Santa Casa. De simpatia irradiante, era sempre cercado pelos seus colegas, pois a prosa do poeta era sempre disputada. Paulo Fraletti (1966) em "Vocação Hipocrática" conta-nos que, certa feita, surpreenderam-no no pátio da Santa Casa de Santos, cercado de mulheres magras e doentias, apertando no peito seus filhos maltrapilhos e famintos. Mulheres que iam buscar leite, pago com a exibição da miséria em que viviam seus rebentos. Leite que, pouco, não chegava para todos. E, Martins Fontes nervoso, cólerico, apoplético, de braços abertos para o céu, exclamava: "Deus! Ó Deus! Se existis, porque ao me fazerdes médico e poeta, duas inutilidades absolutas, não me fizestes uma vaca holandesa e de úberes fartos".

Martins Fontes cantou em versos a riqueza das flores, da fauna, dos mares, dos rios e das mulheres do Brasil. Como poucos, soube cantar sua terra natal, transformando-a em tema do lirismo e de saudade. Poeta de rara sensibilidade, viveu nas praias de Santos e morreu nas praias de Santos. Ele mesmo falou em Paulistania (1934):

Vivi nessas praias

Espero que, um dia

Aqui me sepultem, me deixem ficar

Exposto, desnudo, como eu bem queria,

Num seio de areia, defronte do mar.

Vicente de Carvalho, o nosso poeta do mar, assim também cantou: Mar, belo mar selvagem, das nossas praias solitárias!

Tigre que as brisas da terra e o sono embalam,

A que o vento do lago eriça o pêlo.

A 10 de maio de 1923, a convite do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, Martins Fontes vem a São Paulo para uma conferência no Teatro Municipal. É saudado pelo orador daquela agraciação, o saudoso Dr. Durval Belegarde Marcondes, pioneiro da psicanálise no Brasil. O pianista cego Alfredo Sangiorgi tocou peças de Beethoven e o grande artista Procópio Ferreira recitou poesias de poetas brasileiras. Foi uma noite memorável.

A 25 de junho de 1937, vítima de uma septicemia provavelmente estafilocócica, falece o eminente santista. O féretro saiu do Hospital da Sociedade Portuguesa de Beneficência de Santos para o cemitério do Paquetá. Encerrava-se a vida do famoso vate santista.

Meus caros colegas. Senhores congressistas. Aqui reunidos, neste Encontro que é um hino votivo ao espírito, ao coração e à inteligência, conclamos todos os presentes a prosseguirem em novos esforços, visando sempre o bem do doente. Aliás, isto é o que está realmente no fundo da moral de nossa profissão e que lhe confere valor eterno. Abençoados os esplendores desta noite, que a mim me chegam, precisamente, ao apagar das luzes de tantas ilusões.

Quando os ingleses fundaram em Londres a Royal Society, no prédio onde Mendelsohn compôs sua célebre "Canção da primavera", o mote por eles adotado foi _ "Tudo para a glória de Deus e o bem-estar da humanidade". Que este seja, também, o lema dos que hoje aqui se encontram, enaltecendo nossa profissão, localizando-a pela sua magnitude e de transcendência dentro das grandes categorias do pensamento humano. Assim Deus o permita.

 

Capa e contracapa do suplemento histórico da Acta Medica Misericordiæ, distribuído aos congressistas.

 

 

O AUTOR: Carlos da Silva Lacaz, professor emérito da Universidade de São Paulo, é presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina, fundador e diretor do Museu Histórico "Carlos da Silva Lacaz" da Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo.

THE AUTHOR: Carlos da Silva Lacaz, emeritus professor of the University of São Paulo, is President of the Brazilian Society of the History of Medicine, founder and director of the Historical Museum "Carlos da Silva Lacaz" of the Medical School of the University of São Paulo and of the Institute of Tropical Medicine of São Paulo.

 

ENDEREÇO/ADDRESS: Prof. Carlos da Silva Lacaz, Museu de História da Medicina, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Av. Dr. Arnaldo, 455, 4º andar, São Paulo, SP CEP 01243-900, BRASIL.

PDF file:



Atalhos da página



Revista Acta Medica Misericordiæ
A Revista das Santas Casas
Rede Corporativa e-Solution Backsite