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, 17 de maio de 2024.
06/06/2006
Volume 3 - Número 2
3- Braz Cubas, Leonor de Lencastre, os navegantes e as Misericórdias lusíadas

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Braz Cubas, Leonor de Lencastre, os navegantes e as Misericórdias lusíadas

Braz Cubas, Leonor of Lencastre, the seamen and the Lusitanian Misericórdias

Carlos da Silva Lacaz
Presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina. Museu Histórico "Carlos da Silva Lacaz" da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e Instituto de Medicina Tropical de São Paulo.

Lacaz CS: Braz Cubas, Leonor de Lencastre, the seamen and the Lusitanian Misericórdias. Acta Medica Misericordiæ 2000; 3 (2): 55-58

Resumo:

Braz Cubas, fidalgo português, nascido em 1507, líder do povoado do Porto de São Vicente, posteriormente Vila de Santos, iniciou em 1542 a construção da Santa Casa da Misericórdia de Santos, o mais antigo hospital brasileiro, inaugurado em novembro de 1543. Chamou seu hospital de "Casa de Deus para os homens, porta aberta ao mar". Faleceu em 1592 ou1597. Dona Leonor de Lencastre, a Rainha dos Sofredores, nascida em Beja, levantou o Hospital de Caldas da Rainha, instituiu a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, amparou o teatro de Gil Vicente, contribuiu com a arte e deu assistência aos pobres. Seu cunhado e um irmão foram mortos e perdeu seu único filho. Portugal, com sua vocação marítima, teve o mar como destino de seu povo que enfrentou os perigos e as insídias do oceano tenebroso, abrindo mundos novos para a civilização, o comércio e a aproximação humana. Foram os portugueses que, sulcando os mares deram novos rumos ao mundo. O mar foi sempre o aliado e a tumba dos navegadores portugueses. São múltiplas as obras de misericórdias. Foi em uma Santa Casa de Misericórdia, a de São Paulo, que aprendi o sacerdócio médico. Lá se acolhe o fraco, o pobre, o ignorante de todas as cores e de todos os credos, reacendendo naqueles que sofrem a flama interior da esperança e o lenho ardente da vontade de viver. (Palestra apresentada em 16 de novembro de 2000, na Santa Casa da Misericórdia de Santos, na abertura do V Congresso Brasileiro de História da Medicina).

Descritores: História da Medicina. Hospitais filantrópicos. Ensino.

Summary:

The Portuguese nobleman Braz Cubas, born in 1507, leader of the settlement of the port of São Vicente, which later became the village of Santos, began the construction of the Santa Casa da Misericórdia de Santos in 1542, the oldest Brazilian hospital, opened on November, 1543. He called his hospital "House of God for men, door open to the sea". He died in 1592 or 1597. Lady Leonor of Lencastre, the Queen of the Sufferes, born in Beja, raised the Hospital of Caldas da Rainha, opened the Santa Casa da Misericórdia of Lisbon, helped Gil Vicente's theater, was a patron of fine arts and assisted the poor. Her brother in law and one brother were killed and she lost her only son. Portugal, with its maritime vocation, had the sea as the destiny of its people, who defied the dangers and treacheries of the ocean, opening new worlds for civilization, comerce and human togetherness. The Portuguese, cutting through the seas, gave new directions to the world. The sea was always an ally and tomb for Portuguese seamen. Many are the works of the Misericórdias. It was in a Santa Casa de Misericórdia in São Paulo, that I learned the medical priesthood. There, the weak, the poor, the illiterate of all colors and creeds are welcome, reigniting in the sufferers the internal flame of hope and the fiery wood of the will to live. (Paper presented on November 16, 2000, in the Santa Casa da Misericórdia of Santos, during the opening cerimony for the Fifth Brazilian Congress of the History of Medicine).

Key words: History of Medicine. Hospitals, voluntary. Teaching.

A cidade de Santos sempre teve uma predestinação histórica, no dizer de um de seus filhos mais ilustres, meu querido amigo Oswaldo Paulino. Nascida no Outeiro de Santa Catarina, abençoada pela cruz implantada no pátio da pequeníssima igreja e à sombra da Misericórdia de todos os Santos, aprendeu e seguiu desde os seus primórdios a mensagem do fidalgo Braz Cubas. Seu porto foi o celeiro do descobrimento da Capitania de São Vicente. E a sua Santa Casa, o primeiro hospital em terras de Santa Cruz, marca ainda no berço, a tendência de sua gente para a caridade e a fraternidade. Neste ano 2000, quinhentos do descobrimento do Brasil, recordemos inicialmente um pouco de Braz Cubas, figura central na história desta bela cidade que tantos nomes tutelares teve em seu passado.

Braz Cubas, criador da Santa Casa da Misericórdia de Santos

Fidalgo português, líder do povoado do Porto de São Vicente, posteriormente Vila de Santos, viveu de 1507 a 1592 ou 1597. Iniciou em 1542 a construção da Santa Casa da Misericórdia de Santos, o mais antigo hospital brasileiro, inaugurado em novembro de 1543. O segundo prédio ficou concluído em 1665, no campo da Misericórdia, atual Praça Visconde de Mauá. O terceiro prédio, inaugurado pelo médico Cláudio Luiz da Costa, a 4 de setembro de 1836, junto ao morro de São Jerônimo, atual Monte Serrat, foi parcialmente destruído por um deslizamento de terra, em 1928. O conjunto atual foi inaugurado pelo presidente Getúlio Vargas, à 2 de julho de 1945, com 1400 leitos.

Braz Cubas chamou o seu hospital de "Casa de Deus para os homens, porta aberta ao mar". Recebeu, por doação, uma sesmaria localizada em Geribatyba, hoje Jurubatuba. Nomeado, em 1545, capitão-mor de São Vicente. Lutou contra os indígenas na invasão da Vila de Piratininga em 1562, na fundação do Rio de Janeiro em 1567 e em 1575, em Cabo Frio. Morreu quase centenário.

Sobre a Santa Casa da Misericórdia de Santos, sua origem e evolução, escreveu excelente volume o Prof. Ernesto Souza Campos (1882-1970), por ocasião de seu 4º centenário de fundação, ocorrida em 1943.

Rainha Dona Leonor de Lencastre

O saudoso Prof. Antônio de Almeida Prado (1889-1965), em conferência pronunciada na Casa de Portugal, por ocasião da passagem do V Centenário de nascimento (1458) da rainha D. Leonor de Lencastre, nascida em 1458 ou 1468, tendo falecido em 17 de novembro de 1525, referiu que a mesma teve vida atormentada e cruel, fazendo da caridade o fulcro de sua realeza. Instituindo a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, com seu hospital, Igreja e Confraria, a "Rainha Velha" ou a "Rainha dos Sofredores", foi excepcional em tudo, amparando, também o teatro de Gil Vicente, contribuindo para a construção do famoso monumento da Batalha, incentivando o desenvolvimento da arquitetura manuelina e da ourivesaria portuguesa. Ajudou a imprensa nascente e levantou sozinha, o Hospital de Caldas da Rainha. As misericórdias acudiam a miséria, mas também, tiveram índole educacional e assistencial, concedendo dotes matrimoniais a moças de boa fama.

Paulo Bonfim, o grande poeta paulista, soube cantar em versos a Santa Casa de Lisboa no seu quinto centenário:

E houve uma Santa Isabel

Semeando rosas no mar,

E um D. Diniz trovador

Transformando seu trovar

Nas flores que o verde pinho

Fez um dia navegar.

E houve naus e houve tormentas

Nos rumos do mar profundo,

E descobertas singrando

O olhar de D. João Segundo!

Senhora Dona Leonor

Coberta de ouro e prata

De vosso gesto nasceu

A gesta misericórdia

Em terras de Portugal!

Em vosso real regaço

A pedra da compaixão,

A telha da caridade,

A madeira do socorro

E as argamassas da prece,

Fizeram surgir de agosto

A Santa Casa, casa santa
Subindo aos céus de Lisboa
 

Na oração de Frei Miguel,

Cinco séculos passaram,

Cinco séculos presentes

Nesse milagre de amor

Que de uma casa fez tantas

Casas santas, Santas Casas!

E houve uma Santa Isabel

Semeando rosas dos ventos,

E houve Dona Leonor

Plasmando misericórdias

Em seu reino à beira-mar!

E essas rosas e essas bênçãos

Hoje são alma e são corpo:

- Santa Casa de São Paulo,

Misericordiosamente,

Santa Casa do Brasil!

Mulher extraordinária, teve como berço a cidade de Beja, Capital do Baixo Alentejo, em Portugal, o país pequeno que a Espanha comprime e o mar alarga, na bela frase de nosso grande tribuno Brasílio Machado. Nasceu a 2 de maio de 1458 ou 8 de dezembro de 1468, falecendo em Lisboa, a 17 de novembro de 1525, vestindo o hábito das Claristas, com 67 anos. Fez da caridade o fulcro de sua realeza, conta Almeida Prado.

Passou por quatro reinados: D. Afonso V, D. João II, D. Manoel, o Venturoso e D. João III. Rainha Velha", "Rainha dos Sofredores", teve sempre, como confessor, o Fr. Miguel Contreiras. Filha do Infante D. Fernando e da Infanta D. Beatriz, era bisneta de Dom João I, fundador da casa de Avis e da rainha D. Felipe de Lencastre. Casou-se aos 12 anos com o primo, Dom João II, herdeiro do trono, homem "determinado e insensível". Dotada de rara beleza física sofreu todos os agravos possíveis, torturas físicas e morais.

D. João II mandou decapitar em Évora seu cunhado, o Duque de Bragança e apunhalou o irmão da Rainha, o Duque de Viseu. Um ano depois de casado, enamora-se por D. Ana de Mendonça, jovem fidalga de Castelo, com quem teve um filho bastardo, Dom Jorge. Perdeu seu único filho, o infante D. Afonso, nascido a 18 de julho de 1475, aos 16 anos, quando cavalgava.

Com a morte do rei, restou a herança a Dom Manuel, o Venturoso. Foi incriminada como autora da morte do marido, por envenenamento. A 15 de agosto de 1498 implantou a primeira Irmandade da Misericórdia em Lisboa. Recomendo consulta à obra "Dona Leonor, Princesa Perfeitíssima", de J. Ameal, editada pela Livraria Tavares Martins, 1943, Porto, dedicado à memória do Conde de Sabugosa.

Nosso saudoso colega Édison Ruivo de Souza cantou em versos Dona Leonor de Lencastre, dedicados à Irmandade da Santa Casa da Misericórdia de Santos, no dia 2 de julho de 1966, síntese perfeita da vida operosa de D. Leonor de Lencastre.

Os navegantes lusíadas

Portugal, com sua vocação marítima, teve o mar como destino de seu povo que enfrentou os perigos e as insídias do oceano tenebroso, abrindo mundos novos para a civilização, o comércio e a aproximação humana.

Marinheiro de fama foi Pedro Álvares Cabral, 4º filho de Fernão Cabral - Alcaide Mor do Castelo de Belmonte, situada na Beira Baixa. O 1º canto dos Lusíadas fala de dois grandes barões assinalados: almirante Pedro Álvares Cabral e o comandante oficial da marinha e piloto português Artur de Sacadura Cabral. Diz o referido canto, dos Lusíadas:

As armas e os barões assinalados

Que, da Ocidental praia lusitana,

Por mares nunca dantes navegados

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigo e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo reino, que tanto sublimaram.

Foram os portugueses que, sulcando os mares deram novos rumos ao mundo e se "mais houvera, lá chegara". O mar foi sempre o aliado e a tumba dos navegadores portugueses. "Ó mar, quanto de seu sal são lágrimas de Portugal", mas também quanto caminho abriste às epopéias do heroísmo português.

Ouçamos o poema "O mar português", de Fernando Pessoa.

Ó mar salgado! Quanto do teu sal,

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram.

Quantas noivas ficaram por casar,

Para que fosses nosso, ó mar. Para se passar além do Bujador,

Tem que se passar além da Dor.

Valeu a pena?

Tudo vale a pena, quando a alma não é pequena.

Deus ao mar o abismo e o perigo, deu.

Mas nele, é que espelhou o Céu.

Em resumo, foram nossos irmãos portugueses que descobriram as terras de Santa Cruz, vindo à Cabralia e Porto Seguro, com coragem, arrojo e tenacidade e se mais terras houvera, lá chegariam, também. Saudemos Portugal e sua gente, cuja língua nos une a todos, essa mesma língua de Camões, de Vieira, de Herculano, como de Rui, de Euclides, de Machado de Assis, a "última flor do Lácio", de Bilac, envolvida, aqui, como do outro lado do Atlântico, para a sua definitiva consolidação.

As Misericórdias lusíadas

Caros colegas. Estamos aqui reunidos, graças aos esforços de nosso colega Henrique Seiji Ivamoto, de seus auxiliares Celso Schmalfuss Nogueira e Rosilene Morales e dos patrocinadores, na casa fundada pelo fidalgo português Braz Cubas, a velha Santa Casa da Misericórdia de Santos, "Casa de Deus para os homens, porta aberta ao mar" e que mereceu do meu saudoso mestre Prof. Ernesto de Souza Campos (1882-1970) estudo dos mais completos (1946), desde sua origem e evolução.

Almeida Prado (1965), estudando a obra de Dona Leonor de Lencastre, refere que não existiu exemplo de alguém que tenha conseguido levar avante um programa de caráter social de tanta envergadura. Hoje, todos a consagram. Nas Santas Casas de Misericórdias, os pobres encontram sempre "os remédios de caridosa seara".

São múltiplas as obras de misericórdias, corporais e espirituais. São obras corporais: dar de comer ou de beber a quem precisa; vestir os nus; visitar e cuidar dos doentes; libertar os cativos; visitar os prisioneiros; dar pousada aos peregrinos; enterrar os mortos. São obras espirituais: consolar os aflitos; instruir os ignorantes; converter os pecadores; dar conselhos aos que necessitam; suportar os defeitos dos outros; perdoar os inimigos; rezar pelos vivos e mortos.

Foi em uma Santa Casa de Misericórdia, a de São Paulo, que eu aprendi o sacerdócio médico. Lá eu vi longos corredores e camas, ouvi lágrimas e gemidos, rostos em agonia, dores surdas e mudas, corpos no concreto, o nascer e o morrer, faces marcadas pela dor, a verdadeira caridade deslizando suavemente em grandes corredores, tudo isto formando grande cruz que uma humanidade desvalida carrega. Lá se acolhe o fraco, o pobre, o ignorante de todas as cores e de todos os credos, reacendendo naqueles que sofrem a flama interior da esperança e o lenho ardente da vontade de viver.

A eterna mensagem de Cristo que falou de amor e de caridade era o lema desta Casa e isto é o que está realmente no fundo da moral de nossa profissão e lhe confere valor eterno.

Prestando justas homenagens à Santa Casa da Misericórdia de Santos, que hoje nos abriga, saudemos também nosso colega Henrique Seiji Ivamoto, seus auxiliares Celso Schmalfuss Nogueira e Rosilene Morales e sua valorosa equipe, possibilitando a realização de mais este Congresso da Sociedade Brasileira de História da Medicina. Homens como Ivamoto, dotado de raro espírito público, mostram que nenhum valor real se furta à apreciação do meio e de que a modéstia e a elevação moral são, ainda, os melhores títulos para se abrir caminho na vida.

 

O AUTORTHE AUTHOR: Carlos da Silva Lacaz, professor emérito da Universidade de São Paulo, é presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina, diretor do Museu Histórico "Carlos da Silva Lacaz" da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e ex-diretor do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo.

 

THE AUTHOR:  Carlos da Silva Lacaz, emeritus professor of the University of São Paulo, is president of the Brazilian Society of the History of Medicine, director of the Historical Museum "Carlos da Silva Lacaz" of Medical Schoolof the University of São Paulo and ex-director of the Institute of Tropical Medicine of São Paulo.

ENDEREÇO/ADDRESS: Prof. Carlos da Silva Lacaz, Museu Histórico "Carlos da Silva Lcaz", Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Av. Dr. Arnaldo, 455, 4º andar, São Paulo, SP CEP 01243-900, BRASIL.

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