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, 17 de maio de 2024.
11/07/2006
Volume 4 - Número 1
3 - Manifestações extra-hepáticas da hepatite viral C: relato de caso

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Manifestações extra-hepáticas da hepatite viral C: relato de caso

Extra-hepatic manifestations of viral hepatitis C: case report

José Eduardo Vasconcelos Fernandes, Mônica Cristina Almeida; Suzete Notaroberto, Aristides Rodrigues Jr., Lucimara Santos Pataro
Serviço de Gastroenterologia da Santa Casa da Misericórdia de Santos, programa de pós-graduação em Gastroenterologia Cirúrgica do IAMSPE e Faculdade de Ciências Médicas de Santos.

Fernandes JEV, Almeida MC, Notaroberto S, Rodrigues Jr A, Pataro LS: Extra-hepatic manifestations of viral hepatitis C: case report. Acta Medica Misericordiæ 2001; 4: 26-28

Resumo:

O intuito principal deste trabalho é alertar para as alterações extra-hepáticas que acometem os portadores da hepatite crônica C. Descreve o caso de um paciente que esteve internado no serviço de Gastroenterologia da Santa Casa da Misericórdia de Santos, por desenvolver quadro de manifestações periféricas, tais como vasculite e polineurite, secundárias a presença do vírus da hepatite crônica C e discute a fisiopatologia dessas manifestações.

Descritores: Hepatite C. Crioglobulinemia. Polineurite.

Summary:

The main goal of this article is warning about the extra-hepatic manifestations in hepatitis C. The case of a patient who had been admitted to the Gastroenterology Service of Santa Casa da Misericordia de Santos is reported. He showed periferal symptoms such as vasculitis and polyneuritis associated with the hepatitis virus. The article discusses the pathophysiology of these manifestations

Key words: Hepatitis C. Cryoglobulinemia. Polyneuritis.

INTRODUÇÃO

Desde sua identificação em 1989 o vírus da hepatite C, anteriormente denominado hepatite não-A não-B, vem atingindo proporções epidêmicas em nosso meio. Recente estudo em âmbito nacional, mostrou que a prevalência, na população geral para essa enfermidade é de 1,47%, alcançando níveis de até 46,2% em determinados grupos de maior risco como presidiários3. As formas de contágio são parenterais, pelo uso de transfusão de hemoderivados, seringas contaminadas, hemodiálise e pela promiscuidade familiar, como uso de objetos cortantes por mais de um membro da família3.

A hepatite C é doença com grande potencial para cronicidade, levando à hepatite crônica em até 70% dos pacientes contaminados e idêntica porcentagem de doentes pode desenvolver cirrose hepática8. Na história natural da doença, outros órgãos e sistemas poderão ser comprometidos, originando sintomas extra-hepáticos. Dentre estas manifestações, destacam-se as de cunho imunológico, como por exemplo a polineurite e vasculite secundárias à crioglobulinemia.

As manifestações extra-hepáticas, por envolverem diferentes territórios, dificilmente são associadas a doença hepática viral. O objetivo deste estudo é chamar a atenção para essas associações, já que o diagnóstico precoce das mesmas parece ter grande influência no prognóstico.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, 42 anos, branco, farmacêutico, internado com dores abdominais difusas em cólica, acompanhadas de distensão abdominal e diarréia aqüosa há 20 dias. Apresentava concomitantemente tetraparesia, tetraparestesia, diminuição dos reflexos patelar, aquileu e bicipital, ausência do sinal de Babinsky bilateralmente e diminuição generalizada da massa muscular. Ao exame físico encontrava-se em regular estado geral, emagrecido, orientado, eupneico, com mucosas discretamente descoradas e levemente desidratado. Murmúrio vesicular diminuído nas bases, sem ruídos adventícios. Exame cardiovascular semiologicamente normal. O abdômen encontrava-se distendido, doloroso difusamente à palpação superficial, com ascite moderada, fígado palpável a três centímetros do rebordo costal direito, de superfície irregular e endurecido; baço palpável a um centímetros do rebordo costal esquerdo. Ruídos hidro-aéreos aumentados, de timbre normal.

Entre os exames laboratoriais do paciente, hemoglobina, 8,2 g%; hematócrito, 27%; plaquetas, 122.000/mm3; albumina, 2,8 g%; atividade protrombina, 82%; anti-HCV, HCV-Rna (pcr) e crioglobulinemia positivos; anti-HIV, negativo; complemento C3 e C4, normais; anticorpos ANCA e FAN negativos; anti-Ena Rpn, anti-Ena Sm, Anti-DNA Ds e Anti-DNA Ss, normais.

À esofagogastroduodenoscopia foram encontrados três cordões varicosos, de médio calibre, no esôfago distal. A ecografia confirmou o aumento do fígado, que apresentava contornos irregulares e textura heterogênea, além do aumento do baço e de ascite volumosa. O exame bioquímico do liquido ascítico foi compatível com hepatopatia crônica sem sinais de infecção.

Durante a internação apresentou manchas vinhosas nas mãos, cujas biópsias concluíram por arterite dérmica aguda e miocitólise intensa, confirmando a suspeita clínica de vasculite.

Com o diagnostico de hepatopatia crônica por vírus C, associada a polineuropatia e vasculite dependentes de crioglobulinemia, foi medicado com Interferon alfa na dosagem de 9.000.0000 UI/semana. O paciente não apresentou resposta satisfatória à terapêutica, falecendo por falência de múltiplos órgãos.

DISCUSSÃO

A hepatopatia provocada pelo vírus C tem grande potencial para cronificação e cirrotização. Mesmo com a diminuição das taxas de infecção após a introdução da pesquisa do anticorpo específico pelos bancos de sangue entre 1992 e 1993, a hepatite C continua a ser fonte de grande preocupação entre os gastroenterologistas3. O contágio por agulhas em viciados em drogas, acupuntura e tatuagem, por instrumental contaminado por barbeiros e manicures, por uso de aparelhos de barbear compartilhados no lar, ainda são responsabilizados por novos casos da doença8.

No caso em estudo, apesar de trabalhar em farmácia industrial, o paciente negava contatos com instrumental contaminado, com derivados sangüíneos, uso de drogas e acidentes ocupacionais, deixando desconhecido o fator responsável pela contaminação.

As manifestações extra-hepáticas da hepatite C são múltiplas e de freqüência variável, podendo preceder a apresentação clínica da doença hepática crônica, e em alguns pacientes, direcionando a pesquisa diagnóstica para o vírus C. Entre estas manifestações, o processo inflamatório em pequenas e médias artérias, conhecido como vasculite, pode originar polineurites, artrites, glomerulopatias e lesões dérmicas7. As manifestações extra-hepáticas do vírus da hepatite C podem ser dermatológicas (vasculite cutânea necrotizante, líquen plano, porfiria cutânea tarda, eritema nodoso, eritema multiforme, malacoplaquia, urticária e prurido), endócrinas (hipertireoidismo, hipotireoidismo, doença de Hashimoto e diabete melito), glandulares salivares (sialoadenites), oculares (uveítes e úlcera de córnea de Mooren), hematológicas e linfóides (crioglobulinemia, vasculite, anemia aplástica e linfoma não-Hodgkin B), renais (glomerulonefrite), neuromusculares (fraqueza muscular e neuropatia periférica), articulares (artrite e artralgia), e outras (poliarterite nodosa, fibrose pulmonar, síndrome de CREST, vasculite pulmonar, cardiomiopatia hipertrófica, granulomas, hepatite auto-imune e auto-anticorpos).

O evento fisiopatológico inicial parece ser o tropismo que o vírus C possui pelos órgãos linfáticos, onde induz a maturação de linfócitos B, com produção de imunoglobulinas que formarão imunocomplexos e se depositarão nas artérias provocando o processo inflamatório4,6,9. Imunocomplexos que se precipitam quando a temperatura é inferior a 37° C caracterizam as crioglobulinas, que podem ser encontradas em 40% a 54% dos portadores de hepatite viral C1,4,9.

Embora a observação de crioglobulinemia seja alta nos portadores de vírus C, ela normalmente é paucisintomática, já que as vasculites e polineurites, afecções secundárias à presença desta, ocorrem em apenas 1% a 10%1,4 e 8%5, respectivamente.

Embora as alterações imunológicas desempenhem importante papel na patofisiologia da doença, a resposta ao emprego dos corticosteróides é pobre na maioria dos estudos, utilizando-se como droga de escolha o interferon alfa na dose de 9.000.000 UI/semana, com desaparecimento da crioglobulinemia na maior parte dos pacientes2,9.

Não pudemos avaliar o efeito da medicação no presente paciente, visto que este apresentava alterações imunológicas avançadas, não havendo tempo hábil para a ação do imunomodulador.

CONCLUSÃO

O melhor conhecimento da evolução dos pacientes com hepatite por vírus C, fará com que as manifestações extra-hepáticas, sejam diagnosticadas precocemente, possibilitando rápida ministração da terapêutica efetiva, com conseqüente diminuição da morbidade e da mortalidade.

BIBLIOGRAFIA

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10. Trendelenburg M, Schifferli JA: Cryoglobulins are not essential. Ann Rheum Dis 1998; 57:3-5

 

OS AUTORES: J. E. V. Fernandes é médico chefe do Serviço de Gastroenterologia da Santa Casa da Misericórdia de Santos e pós-graduando em Gastroenterologia Cirúrgica do IAMSPE. M. C. Almeida é estagiária, S. N. Notaroberto e A. Rodrigues Jr. são médicos assistentes do Serviço de Gastroenterologia da Santa Casa da Misericórdia de Santos. L. S. Pataro é aluna da Faculdade de Ciências Médicas de Santos.

 

ENDEREÇO/ADDRESS: Dr. José Eduardo Vasconcelos Fernandes, Av. Ana Costa, 493, conj. 37, Gonzaga, Santos, S. P., CEP 11.060-003, Brasil. Tel. (13) 32894663. gastrocor@gastrocor.med.br

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